Pragmática e Linguística Textual

12.1 Referência anafórica

(…) Há construção de referência anafórica (ou de relação anafórica, ou de anáfora), quando a referência de um elemento A é construída por retoma, total ou parcial, da referência de um elemento B. Na relação anafórica construída entre A e B, o elemento A é o termo anafórico (ou anáfora) e o elemento B é o termo antecedente (ou antecedente). Os elementos A e B são também designados, respectivamente, termo anaforizante e termo anaforizado.(1)

Vejamos alguns exemplos:

1. a. a Ana viu um rapaz na praia; o/esse rapaz tinha os cabelos verdes

b. um rapaz deu a uma rapariga o livro que ela lhe pediu. A rapariga ficou muito contente

c. um rapaz e uma rapariga foram ao teatro. Os lugares eram tão maus que eles quase não viam os actores

d. Os lugares eram péssimos. A Ana queria ir-se embora e o Gil não quis. Foi assim que começou a zanga deles

e. a Ana comprou um gato; o animal passeou pela casa toda

Em (1a), a interpretação do SN o/esse rapaz só é possível pela retoma, com identificação referencial total, do SN um rapaz (que a Ana viu na praia). Nesta relação de retoma anafórica, o SN o/esse rapaz é o termo anafórico e o SN um rapaz é o antecedente.

Em (1b), encontramos a construção de três relações anafóricas: duas delas têm o mesmo antecedente - o SN uma rapariga - e têm como termo anafórico o pronome ela e o SN a rapariga, respectivamente; a terceira relação anafórica tem como antecedente o SN um rapaz e como termo anafórico o pronome lhe.

Em (1c), há três relações anafóricas: uma delas tem o pronome eles como termo anafórico e o SN complexo um rapaz e uma rapariga como antecedente; noutra, o antecedente é o SN o teatro e o termo anafórico é o SN os lugares; na terceira, o SN o teatro é o antecedente e o SN os adores é o termo anafórico.

Em (1d) encontramos uma relação anafórica entre um antecedente complexo constituído pelos SNs o Gil e a Ana e um termo anafórico pronominal, o pronome deles; e outra relação anafórica entre um antecedente constituído pela descrição de uma sequência de acontecimentos linguísticos (os lugares eram péssimos, a Ana queria ir-se embora, o Gil não quis), e um termo anafórico constituído pelo advérbio assim.

O exemplo (1e) contém uma relação anafórica, na qual o SN um gato é antecedente e o SN o animal é o termo anafórico.

(…)

12.2. Referência deíctica

Referência anafórica e referência deíctica são geralmente tratadas a par. Num caso e noutro, a construção da referência é dependente de uma vizinhança - textual, no caso da anáfora, situacional, no caso da deixis. Por outro lado, muitas das formas linguísticas que marcam a referência anafórica marcam também a referência deíctica. Por estas razões, na breve apresentação que se segue, procuraremos relacionar os dois tipos de construção da referência.

Comecemos por observar um texto:

(30)

Ravena, 3 de Setembro de 1970 - Estou aqui a lembrar-me de Granada. É que sinto a mesma perplexidade rendida que senti há anos naquela cidade espanhola. Tão insólita e fascinante me pareceu nela a arte moira, como nesta a bizantina.(2).

Na ausência dos elementos identificadores da situação de enunciação em que foi produzido este texto, a interpretação referencial seria difícil e incompleta. Duas cidades são comparadas: uma está identificada, é Granada, a outra é aquela onde o enunciador se encontra no momento em que escreve o seu texto, e que é referida através de um advérbio aqui e de um SP nesta. E para a identificação referencial destes dois termos é necessário conhecer as coordenadas definidoras da situação de enunciação: S0 (Sujeito da enunciação), T0, (Tempo (-espaço) da enunciação) Sit(S0, T0).

Formas linguísticas como aqui e nesta, mas também eu (ou o morfema da flexão verbal que, em português, marca a 1.ª pessoa gramatical), cuja interpretação referencial é dependente do conhecimento das coordenadas que definem a situação de enunciação são designadas deícticos. 0 processo de construção da referência deíctica de um texto constitui a deixis.

Os pronomes pessoais sujeito e complemento da 1ª e 2ª pessoas gramaticais constituem os deícticos por excelência. Não têm qualquer interpretação fora do contexto enunciativo. Nas palavras de Benveniste (1966: 260): «Est ego qui dit ego». Em termos da teoria formal enunciativa, eu marca a localização, com valor de identificação de S2, sujeito do enunciado, cm relação a S0, sujeito da enunciação, e tu marca a mesma localização, mas com valor de diferenciação.

São igualmente deícticos os advérbios de tempo e lugar que, sendo localizadores temporais e espaciais, só são interpretados referencialmente pela sua localização em relação a Sit0: aqui, aí, ali, hoje, ontem, amanhã; etc. E são ainda deícticos os adverbiais temporais localizadores como há anos, dentro de dias, etc, mas não os adverbiais aspectuais como durante anos, em meia hora, etc.

Observamos no texto (30) as formas verbais estou e sinto, marcadoras do valor temporal de simultaneidade entre T2, tempo do acontecimento linguístico, e T0, tempo da enunciação. E a forma verbal senti marcadora do valor temporal de anterioridade também entre T2 e T0. A interpretação referencial dos tempos gramaticais é, geralmente, dependente de T0. Podem, portanto, ser também designados deícticos.

Vejamos agora, no mesmo texto, o SP nesta (com elipse do N), cuja interpretação referencial depende do conhecimento da situação de enunciação. Este é um exemplo de demonstrativo como marcador de referencia deíctica, cruzando-se com uma cadeia anafórica, a partir da qual o N elíptico é interpretado, ao adquirir referência virtual: o antecedente na cadeia é Granada, os elos- termos anafóricos - são naquela cidade e nela.

Num exemplo como (31):

(31) este/esse/aquele livro é do Gil

o SN definido em que o especificador é um demonstrativo é de natureza deíctica. Mas também é deíctico o SN o Gil, que marca a construção de um valor referencial único na situação de enunciação definida pelo enunciador e pelo co-enunciador.

12.2.1 Referência deíctica e referência anafórica

Comparemos a utilização dos demonstrativos em (32a) e (32b):

(32)

a. falemos dos filmes em vídeo que se vendem neste clube. Neste momento, as cassetes mais caras são...

b. na Avenida Y, há um pequeno clube de vídeo, o clube X. Com cerca de dois anos, este clube conta com 200 sócios, na sua generalidade pessoas que trabalham naquela zona.

Constatamos, em (32), que os deícticos espaciais ou temporais (neste clube, neste momento) adquirem, enquanto anafóricos, uma dimensão temporal do mesmo valor, dentro da ordenação temporal imposta pela linearidade do texto (este clube, naquela zona).

Sublinhemos uma diferença básica entre deixis e anáfora. Pela anáfora, retoma-se uma referência que já tem o seu lugar no universo de referência criado pela enunciação, uma vez que foi mencionado anteriormente (um clube, o clube); com a deixis passa-se o contrário; é a própria deixis que introduz a referência naquele universo.

Por vezes, um termo é simultaneamente deíctico e anafórico:

(33)

a. nasci em Lisboa e aqui tenho vivido sempre

b. nasci em Lisboa e ali/aí tenho vivido sempre

Os advérbios deícticos aqui em (33a) e ali/aí em (33b) estão em relação de anáfora com o antecedente Lisboa. Mas (33a) marca a identificação entre a coordenada espacial da enunciação (Sit0) e a coordenada Sit2 (Lisboa), ao passo que (33b) marca a diferenciação entre as duas coordenadas (3)

12.3 Tópicos de recapitulação geral

. referência anafórica

. correferência

.referência deíctiva

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(1) Ver, entre outros, J.-C. Milner 1982.

(2) Miguel Torga, Diário XI.

(3) Ver Lyons 1977:676.

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CAMPOS, M.H.C e M.F. XAVIER. (1991).Sintaxe e Semântica do Português. Lisboa: Universidade Aberta, (pp. 361-379).