B6. Semântica->
Predicação

1.1. Um esquema geral do sistema gramatical

(…)

A combinação de elementos do léxico permite-nos construir sucessões de unidades que exprimem o que em Lógica em geral se chama uma proposição ou, em certos autores, uma predicação. Sem nos preocuparmos com algumas precisões na definição destas noções, que se imporiam no ambiente da Lógica, consideraremos que uma predicação é uma estrutura linguística do plano semântico por meio da qual veiculamos informações acerca de objectos do real: Uma parte importante destas informações assume uma de duas formas: (ii) atribuição de uma propriedade a uma ou mais entidades, como nas frases (1) a (3), ou (ii) estabelecimento de uma relação entre entidades, como em (4) a (6):

(1) O Paulo é calmo.

(2) As raparigas estão muito divertidas.

(3) A Ana adormeceu.

(4) A Rita leu vários artigos.

(5) O Paulo está a conversar com a Ana.

(6) O Luís ofereceu um refresco à Rita.

(…)

1.2. A construção de predicações

1.2.1. Elementos essenciais da predicação

Toda a predicação tem de conter um elemento que, consoante os casos, exprime a propriedade de uma ou mais entidades ou a relação entre entidades a que nos referimos na subsecção anterior. A esse elemento, que, identificando a predicação, desempenha nela uma função nuclear, damos o nome de predicador (1). Certas predicações constroem-se, pelo menos a um nível superficial de análise, apenas com o elemento predicador e operadores temporais. É o caso das estruturas com verbos meteorológicos, que ocorrem em frases como as seguintes:

(13) Choveu.

(14) Vai nevar.

 

Porém, na maioria dos casos, a predicação requer, além do elemento predicador, a presença de uma ou mais expressões que identificam as entidades a que se aplica uma propriedade ou entre as quais é estabelecida uma relação. A estas expressões damos o nome de argumentos (do predicador ou da predicação). Nas frases (1) a (6), os predicadores (na sua forma não flexionada) e os argumentos são os seguintes:

(15)

Predicador

Argumento

frase (1) calmo

frase (2) divertido

frase (3) adormecer

frase (4) ler

frase (5) conversar

frase (6) oferecer

o Paulo

as raparigas

a Ana

a Rita; vários artigos

o Paulo; [com] a Ana

o Luís; um refresco

[a]a Rita

 

Poderemos designar por elementos essenciais (ou obrigatórios) da predicação os elementos intervenientes na formação de uma predicação referidos na presente subsecção - o predicador e os seus argumentos -, os operadores tipicamente semânticos de Modo, de Tempo, de Aspecto e de Polaridade e ainda os necessários valores pragmáticos, todos eles referidos na subsecção anterior.

Devemos desde já salientar que nem todas as combinações de predicadores com argumentos resultam em frases gramaticais. De facto, existem condições de boa-formação de predicações, que restringem as combinações possíveis.

(…)

Consideremos agora brevemente alguns aspectos de natureza sintáctica e semântica relativos aos argumentos de uma predicação. Quanto à sua natureza sintáctica, os argumentos das predicações podem ser nominais (precedidos ou não de preposição) e oracionais (precedidos ou não de preposição). Nas frases (1) a (6), todos os argumentos são nominais, sendo dois preposicionados, um na frase (5) e outro na frase (6). Nas frases que se seguem, os argumentos sublinhados são oracionais:

(16) Disseram-me que esta igreja vai ser restaurada.

(17) 0 menino prometeu deixar tudo no lugar.

(18) A crítica considerou o filme revolucionário.

De acordo com a gramática tradicional, as frases acima - com excepção de (18) (vd. nota 2) - são consideradas como contendo duas orações, assim discriminadas:

(19) exemplo(16):

or. principal (subordinante):disseram-me

or. subordinada integrante: que esta igreja vai ser restaurada

exemplo (17):

or. principal (subordinante): o menino prometeu

or. subordinada infinitiva: deixar tudo no lugar

 

É fácil ver que esta análise não é satisfatória pela simples razão de que as estruturas consideradas orações principais não contêm predicações, isto é, são estruturas incompletas, em que pelo menos um dos argumentos do predicador esta excluído da estrutura. Ora, em qualquer gramática tradicional se pode verificar que o conceito de oração - umas vezes claramente expresso, outras apenas subentendido - envolve o conceito que aqui apresentamos de predicação.

Uma análise alternativa, correntemente adoptada pela linguística contemporânea, consiste em considerar as estruturas em causa - (16) e (17)-, no seu todo, como frases, tomando-se este termo, grosso modo, como um equivalente (mais ou menos) moderno do termo «oração» da terminologia gramatical portuguesa. Nesta perspectiva, as orações subordinadas são parte integrante da frase total, onde aparecem «encaixadas». Recorrendo a terminologia também corrente, usaremos designação de frase matriz para as frases tomadas na sua totalidade em casos como os de (16) e (17). Quanto às frases que a gramática tradicional classifica como orações subordinadas, usaremos para as designar a expressão frase encaixada. Assim, faremos o seguinte tipo de distinção:

(20) exemplo (16):

fr. matriz: disseram-me que esta igreja vai ser restaurada

fr. encaixada: que esta igreja vai ser restaurada

exemplo (17):

fr. matriz: o menino prometeu deixar tudo no lugar

fr. encaixada: deixar tudo no lugar

 

Ainda no que respeita à realização sintáctica dos argumentos, importa referir brevemente a oposição entre argumento externo e argumento(s) interno(s), importante para a análise de algumas construções de que adiante nos ocuparemos. De forma muito simplificada e sem atendermos neste momento a possíveis excepções, consideraremos que o argumento externo de um predicado é aquele que se realiza tipicamente fora do sintagma de que o predicado é núcleo, ou seja, é o argumento que se realiza geralmente como sujeito. Os argumentos internos de um predicado são, contrariamente, aqueles que se realizam dentro do sintagma acima referido, como complementos do predicado. Assim, numa frase como (6) - o Luís ofereceu um refresco à Rita -, existem um argumento externo - o Luís e dois argumento internos - um refresco e à Rita.

Situemo-nos agora no plano semântico. As entidades referidas por meio dos argumentos das predicações podem ser de diferentes naturezas no que respeita ao seu estatuto ontológico e, consequentemente, num plano cognitivo, no que respeita ao tipo de representações mentais que delas elaboramos. Nas frases (1) a (6), todas as entidades referidas pelos argumentos nelas ocorrentes são o que, em linguagem comum, geralmente designaremos por objectos ou indivíduos. Independentemente de outras distinções pertinentes, é frequente distinguirem-se objectos concretos - como este livro, o leitor que o lê ou o planeta Marte - e objectos abstractos, como a Justiça, o regime democrático ou a competitividade de uma empresa. Por sua vez, nas frases (16) a (18), além de serem referidas - por meio dos argumentos não sublinhados - entidades que são objectos, são também referidas - por meio dos argumentos que aparecem sublinhados - entidades de outro tipo, que, também em linguagem comum, podemos designar por situações, ou - em terminologia igualmente corrente - por estados de coisas.

Facilmente se verifica que os objectos só podem ser designados por meio de argumentos nominais. As situações, todavia, podem ser designadas tanto por meio de argumentos nominais como por meio de argumentos oracionais. Encontramos exemplos de situações referidas através de argumentos nominais nas seguintes frases:

(21) A Tomada da Bastilha comemora-se a 14 de Julho.

(22) Esses acontecimentos são animadores.

(23) Os bombeiros controlaram a situação.

 

(...)

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(1)Convencionalmente, atribuímos ao termo predicado o sentido bastante genérico de expressão que, em função do seu significado, tem capacidade para funcionar como predicador. Ora, dado que apenas as expressões das categorias Verbo, Nome, Adjectivo e algumas da categoria Advérbio - e ainda, para alguns autores, as pertencentes a certas subclasses das Preposições e das Conjunções - podem desempenhar a função nuclear de predicador o termo «predicado» acaba por ser utilizado - em certos meios, entenda-se - para designar os membros de todas estas classes e subclasses de palavras. Neste entendimento da palavra, todos os predicadores são sempre predicados, mas nem sempre os predicados são usados como predicadores. Para designarmos um predicador, podemos, por conseguinte, utilizar qualquer dos termos em questão.

 

(2) 0 argumento oracional desta frase (o filme revolucionário) é de tipo não-frásico, em virtude de não apresentar um elemento verbal. A este tipo de estruturas tem-se dado o nome de orações reduzidas ou orações pequenas (do inglês «small clauses»)
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PERES,J.A e T. MÓIA. (1995). Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Ed. Caminho, Lisboa, (pp.17-25).