B6. Semântica->
Predicação

5. Mecanismos de construção proposicional e de referência

5.1. Predicação

Se, de um ponto de vista semântico, a operação predicar consiste em atribuir uma determinada propriedade a um certo termo ou em estabelecer uma relação entre termos, do ponto de vista comunicativo, o acto de predicar (e, portanto, a construção de predicações) visa, fundamentalmente, descrever estados de coisas relativos a um dado universo de referência.

Por esta razão, para a descrição semântico - pragmática dos mecanismos predicativos, é relevante dispor-se de uma tipologia dos estados de coisas que podem ser descritos por uma língua natural; será esse o objecto do ponto 5.1.1.

No ponto 5.1.2.,e tendo já em conta a tipologia proposta em 5.1.1., proporemos uma tipologia de predicadores válida para o Português.

Esta tipologia de predicadores tem em conta apenas predicações que descrevam estados de coisas relativos ao mundo real, ou a universos de referência em que os objectos tenham propriedades semelhantes às que têm no mundo real (1). Por outro lado, a tipologia de predicadores que apresentaremos terá em conta apenas o funcionamento não metafórico das expressões linguísticas.

5.1.1.Tipologia dos estados de coisas

Consideremos os seguintes enunciados:

(1)

(a) O João está deitado.

(b) O Museu do Ar fica em Alverca.

(2)

(a) A Ana escreveu um romance.

(b) O vento partiu o vidro da janela.

(3)

(a) A Maria guiou o jipe todo o dia.

(b) A pedra rebolou com o vento.

Os ESTADOS DE COISAS descritos em (1), (2) e (3) tem características diferentes.

Nos estados de coisas descritos em (1) nenhuma das entidades envolvidas (o João, em (1a), o Museu do Ar e Alverca, em (1b)) sofre qualquer alteração ou transição durante o intervalo de tempo ('It') em que tais estados de coisas têm lugar. Aos estados de coisas com esta propriedade atribuímos o traço [-DINÂMIC0] e chamamos ESTADOS.

(…)

Por oposição, nos estados de coisas descritos em (2) e (3) pelo menos uma das entidades envolvidas realiza ou sofre um dado «fazer» (de natureza física, fisiológica ou psíquica), mudando eventualmente de lugar ou estado. Aos estados de coisas com esta propriedade atribuímos o traço [+DINÂMICO].

Comparando (2) com (3), constatamos que os estados de coisas descritos por (2) exprimem a alteração de um estado p (que tinha lugar no It' imediatamente anterior) para um outro estado p' (localizado no intervalo de tempo imediatamente posterior à sua ocorrência). Assim, em (2a) descreve-se a passagem de um estado p (p =o romance não existe) para um estado p' (p' =o romance existe); em (2b) descreve-se a mudança de estado de o vidro da janela de p (p= o vidro da janela não está partido) para p' (p' =o vidro da janela está partido). Tanto em (2a) como em (2b) é indicada a entidade responsável pela mudança de estado ocorrida: a Ana, (em (2a)), o vento, (em (2b)). Aos estados de coisas [+DINÂMICO], localizados num dado It, que exprimem a passagem de um estado p, para um estado p', chamamos EVENTOS ('ev').

Consideremos agora os estados de coisas descritos em (3). 0 que eles exprimem não é uma mudança de estado, mas sim um dado «fazer» específico, realizado ou sofrido por uma entidade x. Assim, em (3a)descreve-se um dado «fazer» especifico (guiar o jipe) realizado por uma dada entidade (a Maria), com início no momento de tempo imediatamente posterior ao ev a Maria começar a guiar o jipe e com termo no momento de tempo imediatamente anterior ao ev a Maria acabar de guiar o jipe; em (3b) descreve-se um dado «fazer» específico (rebolar), sofrido por uma dada entidade (a pedra), com início no momento de tempo imediatamente posterior ao ev a pedra começar a rebolar e com termo no momento de tempo imediatamente anterior ao ev a pedra acabar de rebolar. Aos estados de coisas [+DINÂMICO] que exprimem um dado «fazer» localizado num It aberto, delimitado por dois ev chamamos PROCESSOS

De um outro ponto de vista, os estados de coisas descritos em (1a), (2a) e (3a) distinguem-se dos descritos em (1b), (2b) e (3b): enquanto nos primeiros uma das entidades envolvidas tem o poder de determinar (intencionalmente) a ocorrência ou a não-ocorrência do estado de coisas, nos últimos não existe nenhuma entidade com esse poder. Chamamos entidade CONTROLADORA a uma entidade com a propriedade acima referida. Nos exemplos considerados, o João, a Maria e a Ana são as entidades controladoras dos estados de coisas descritos, respectivamente em (1a), (2a) e (3a).

5.1.2. Tipologia dos predicadores

Se o tipo de estado de coisas que se pretende descrever determina, por um lado, a classe sintáctico-semântica do PREDICADOR e, por outro, o papel das entidades designadas pelos argumentos, o predicador seleccionado determina o número de argumentos que têm de ocorrer obrigatoriamente na predicação (ou que, embora não ocorrendo, têm de ser recuperáveis contextualmente) e a relação semântica que cada um deles mantém com o predicador. O predicador é, portanto, o elemento em torno do qual se organiza uma predicação.

5.1.2.1. A noção de esquema predicativo

Consideremos os seguintes exemplos:

(12)

(a) (0 Luís) ofereceu (um disco) (ao amigo).

(b) (0 Luís) está doente.

(c) (0 Luís) é médico.

(d) (0 Luís) mora (ali).

(e) (0 Luís) acha (que é melhor o doente ser internado).

Nos exemplos (12) ocorrem predicadores pertencentes a diferentes categorias sintácticas: verbais (em (12a), (12d) e (12e)), adjectivais (em (12b)) e nominais (em (12c)). Também os argumentos das predicações contidas em (12) pertencem a várias classes sintácticas: nominais, adverbiais (ali, em (12d)) e frases (que é melhor o doente ser internado, em (12e)).

0 número de argumentos que tem de ocorrer obrigatoriamente varia em função do predicador seleccionado. Assim, os predicadores que ocorrem em (12b) e (12c) exigem apenas um argumento, os que ocorrem em (12d) e (12e} exigem dois argumentos e o que ocorre em (12a)exige três argumentos. Aos predicadores que exigem apenas um argumento chamamos predicadores de um lugar, aos que exigem dois argumentos chamamos predicadores de dois lugares e aos que exigem três argumentos chamamos predicadores de três lugares. Aos argumentos exigidos obrigatoriamente por um predicador chamamos argumentos nucleares desse predicador.

(…)

___________________________________

(1) Consideremos, por ex., o predicador assassinar; ele exprime uma acção exigindo um objecto controlador (intencional) da acção e um objecto controlado. No mundo real, os objectos controladores (intencionais) estão limitados a uma subclasse de objectos físicos animados: certos animais e, em particular, os seres humanos. Logo, a frase A minha janela já assassinou um bandido viola parte das condições exigidas pelo predicador assassinar. No entanto, se o universo de referência for um mundo estruturado de tal forma que objectos físicos inanimados sejam dotados de inteligência, vontade e intencionalidade, tal frase é perfeitamente natural, não violando quaisquer das condições exigidas por assassinar.
___________________________________

(Texto adaptado)

 

MATEUS, M.H.M, A.M.BRITO, I.DUARTE e I.H.FARIA (1989). Gramática da Língua Portuguesa, 2ª edição, Ed, Caminho, Lisboa (pp.37 -42).