Semântica - Pragmática - Linguística textual

José G. Herculano de Carvalho (1983). Teoria da Linguagem, Natureza do Fenómeno Linguístico e análise das línguas,
vol.I. Coimbra: Coimbra Editora Limitada (6.ª ed).

 

O acto de fala (p. 221 e sgts.)

(...) A linguagem, considerada na sua natureza essencial, é uma actividade, um agir livre e finalístico, realizado pelos homens enquanto seres pensantes e enquanto membros e criadores da sociedade. A esta sua qualidade fundamental podemos agora referir algumas outras características e alguns princípios teóricos não menos importantes. Em primeiro lugar, que a linguagem, sendo, como toda a actividade, um fenómeno temporal — que decorre no tempo e a ele está sujeito—, se manifesta, em cada indivíduo, em momentos mais ou menos discontínuos da sua existência: actividade única na sua essência, e virtualmente constante, ela revela-se ou realiza-se concretamente num número indefinido de actos. Cada um destes, — que chamaremos indiferentemente actos de fala, actos verbais, actos linguísticos—, poderá considerar-se pois como um momento da actividade linguística de um sujeito falante, delimitado por dois silêncios, o que o precede imediatamente — precedendo o seu início—, o que o segue — marcando a sua conclusão —, antecedendo por sua vez o início de novo acto realizado por um segundo sujeito, ou assinalando o termo final de um diálogo.

Em sentido mais lato entenderemos também o acto de fala como o momento de actividade verbal realizada por dois ou mais sujeitos implicados num diálogo, delimitado do mesmo modo por dois silêncios. Se quisermos distinguir terminologicamente os dois sentidos em que entendemos a expressão acto verbal e suas equivalentes, diremos que no primeiro se trata de um acto verbal simples, no segundo, de um acto verbal complexo, compreendendo este, por conseguinte, a totalidade dos actos simples realizados sucessivamente por cada um dos interlocutores ou protagonistas do diálogo, que alternadamente (às vezes simultaneamente...) agem como emissor e como receptor.

Convém porém notar desde logo que em qualquer dos casos tal conceituação do acto linguístico representa uma simplificação extrema do fenómeno real da fala humana, que em si mesmo é consideravelmente mais complicado. Em primeiro lugar porque, como sabemos, a actividade linguística se realiza também silenciosamente, sendo então muito difícil, senão mesmo impossível, demarcar limites nessa forma de linguagem. Em segundo lugar, porque este falar em silêncio frequentemente interfere com, ou se continua em, a actividade linguística patenteada sob forma sonora. Sucede com efeito que, enquanto nos encontramos mergulhados nos nossos pensamentos (falando para nós mesmos), o facto de alguém nos dirigir a palavra ou, se é de nós que parte a iniciativa, de a dirigirmos a outro, determina o início de um novo acto de fala, agora sonoramente manifestado — numa conversa, num diálogo explícito—, mas pode não interromper, ao menos totalmente, a actividade verbal interna, que antes se processava e que continua pois, acompanhando cronologicamente o acto externo, ou de que retomamos o fio, uma vez este concluído. Por outro lado, a própria manifestação sonora, o diálogo explícito efectuado entre dois ou mais sujeitos, é, muitas vezes, a continuação de outro diálogo anteriormente realizado e materialmente terminado, e que pode ter prosseguido silenciosamente no íntimo da consciência de cada um desses indivíduos. Além disso, finalmente, dentro do próprio discurso, realizado num acto verbal simples, não raras vezes surgem pausas que não marcam o seu termo, mas que simplesmente significam hesitação do falante ou que aí delimitam certos segmentos significativos que compõem o mesmo discurso — as frases (sobre as quais v. cap. 16)-, como partes de um todo.

Será pois unicamente para efeitos práticos — de estudo e de análise—, que reduziremos os actos linguísticos aos momentos de actividade verbal realizada por um ou vários sujeitos num determinado lapso de tempo, manifestados sonoramente e delimitados por dois silêncios.


Actos e produtos noutras  actividades (pp. 234-235)

Procuremos tomar mais claras as distinções que até aqui estabelecemos entre a actividade, o acto e o texto (produto), tomando um exemplo de outra espécie de actividade, que será o desporto. Quando afirmamos que certo indivíduo é desportista, queremos dizer que ele realiza essa espécie de actividade, em qualquer das suas diversas modalidades, através de vários anos seguidos da sua existência. Permanente em potência, essa actividade é porém praticada, não continuamente, e sim em momentos, frequentes e prolongados, mas descontínuos, actualizada em segmentos cronológicos delimitados por soluções de continuidade — espaços de repouso ou de exercício de outra ou outras actividades. Cada um desses momentos, em que o desportista age como tal, é assim um acto desportivo, correspondente na linguagem ao acto de tala, realizado num determinado lapso de tempo, num determinado lugar do espaço, em determinadas circunstâncias.

Cada um desses actos tem também um produto, comparável ao texto produzido pela linguagem: é o conjunto dos gestos, movimentos e atitudes materialmente executados pelo sujeito que estamos a considerar. São estes gestos e movimentos que, nesse agir momentâneo, podem ser materialmente percebidos (conhecidos através dos sentidos), e tomar-se objecto do que se chama um «relato desportivo». O que é pois objecto imediato deste relato, — que agora podemos também comparar com a fixação gráfica (ou outra) do texto —, não é pois o agir ou o acto em si mesmo, mas esses movimentos em que ele se manifesta e que constituem simultaneamente a forma (ou configuração) e o produto desse agir; não é o fazer, que é o acto, mas o feito ou facto, produto em que o fazer se traduz. O fáctico decorre continuamente do fazer, assim como o fazer se reflecte em cada momento no fáctico, mas é unicamente através deste — objecto imediato de conhecimento e susceptível de uma certa fixação — que aquele se tom a, também, mediatamente portanto, acessível ao conhecer de um sujeito.