Algumas notas sobre as primeiras gramáticas |
MATEUS, M.H. e VILLALVA, A. (2006) O Essencial sobre Linguística, Ed. Caminho, Lisboa, (pp.31-37).
AS PRIMEIRAS GRAMÁTICAS As primeiras descrições linguísticas conhecidas foram produzidas em obras de gramáticos hindus, no I milénio a. C. Na Índia antiga, o Sânscrito (palavra que significa 'perfeito') era considerado como uma língua mágica e sagrada e, por essa razão, não podia sofrer a menor alteração de pronúncia ao ser usada nos rituais religiosos. É, pois, em consequência de uma preocupação religiosa que as descrições desta língua vão surgir. O mais conhecido dos gramáticos hindus é Panini, que viveu no século V ou IV a. C. A descrição dos sons, a representação das sílabas por diferentes caracteres conforme as consoantes e as vogais que as constituem, as regras ou definições com que o autor explica a construção das frases ou dos nomes compostos mostram um conhecimento aprofundado do funcionamento do Sânscrito. Esta preocupação com a preservação da pureza da língua, ou seja, com as consequências da mudança linguística - atitude que caracteriza a gramática de Panini e dos restantes gramáticos hindus -, irá sendo retomada ao longo dos séculos e persiste ainda nas chamadas gramáticas normativas, como, por exemplo, as gramáticas escolares destinadas ao ensino da língua. OS GREGOS E OS ROMANOS O estudo das línguas desenvolvido pelos gregos orienta-se em dois sentidos. Por um lado, a curiosidade e o interesse acerca da origem da linguagem, da mudança e da diversidade linguística levam a reflexões filosóficas como as que encontramos em Platão 428-348 a. C.) e em Aristóteles (384-322 a. C.). O ponto crucial destas reflexões situa-se na discussão entre a defesa, feita por Platão no Crátilo, de que as palavras reflectem, por natureza, a realidade que nomeiam, e a convicção aristotélica de que o seu significado resulta de um acordo entre os homens e, portanto, é convencional. Outros autores procuraram alcançar um conhecimento mais aprofundado acerca do funcionamento da sua língua. A análise do Grego em todos os seus níveis começa por permitir um aperfeiçoamento do alfabeto, mas também conduz à elaboração de gramáticas. A autoria da primeira gramática grega, que distingue oito partes do discurso* – artigo, nome, pronome, verbo, particípio, advérbio, preposição e conjunção – é atribuída a Dionísio de Trácia (170-90 a. C.). A análise sintáctica do Grego é desenvolvida na obra de Apolónio Díscolo (século II d. C.) que, na esteira de Aristóteles, considera que a estrutura da frase assenta em dois elementos fundamentais: o sujeito e o predicado. As obras dos gramáticos gregos e a sua doutrina gramatical tiveram repercussão sobretudo no oriente grego, chegando tardiamente ao ocidente da Europa, através dos gramáticos latinos. Nas palavras de Mouton, «se Roma merece um capítulo numa história da linguística, é bem menos por ter produzido que por haver transmitido» . Na realidade, e apesar de as obras dos gramáticos latinos serem mais demoradamente descritas na história da linguística do que as dos gregos, o seu mérito é sobretudo o de nos terem dado a conhecer as reflexões gramaticais e filosóficas dos seus antecessores, na linha, aliás, de outros ensinamentos que Roma foi buscar à Grécia subjugada. Os gramáticos latinos mantiveram-se como modelo durante toda a Idade Média. Nos países nórdicos e anglo-saxónicos, as gramáticas latinas foram as primeiras a ser sistematicamente elaboradas para o ensino de uma língua estrangeira — neste caso o Latim que, durante séculos, cumpriu a função de língua franca. Nos países de matriz românica, o estudo das línguas vernáculas — como as várias línguas faladas na Europa Ocidental era feito, até meados do século XVI, a partir de gramáticas escritas em Latim e que seguiam o modelo das primitivas gramáticas latinas. A partir dessa altura, a alfabetização recebeu um notável impulso, que prosseguiu com a possibilidade de difusão dos textos escritos, nos quais se incluíam as gramáticas. |
Versão integral da Gramática da Linguagem Portuguesa de Fernão de Oliveira, na Série Memória da Língua Portuguesa da Biblioteca Nacional Digital: http://purl.pt/120. |
O RENASCIMENTO E O INTERESSE PELO VERNÁCULO Com o Renascimento desenvolveu-se, de forma sistemática, o estudo das línguas particulares. Afastando-se da tradicional atenção dada a aspectos gerais que ultrapassavam as línguas individuais (por exemplo, as definições genéricas de 'sujeito' e 'predicado' como partes indispensáveis da oração), os gramáticos começaram a examinar as características que distinguiam as línguas entre si. É também no final da Idade Média e no início do Renascimento que se dá um incremento do ensino da leitura e da escrita em vernáculo. Durante a primeira metade do século XVI, surgem numerosas Cartinhas, ou Cartilhas, para aprender a ler. A partir do século XVI publicam-se várias Ortografias, das quais vale a pena destacar a Ortografia da Língua Portuguesa, de Duarte Nunes de Leão (1576). |
Versão integral da Ortografia da Língua Portuguesa, de Duarte Nunes de Leão na Série Memória da Língua Portuguesa da Biblioteca Nacional Digital: http://purl.pt/15. |
Entre os séculos XVI e XVIII, o ensino das línguas vernáculo ocupou um espaço progressivamente mais amplo. Em Portugal, par das gramáticas, das cartinhas e das ortografias, surgiram dicionários e vocabulários. Foi também no século XVIII, com o firme apoio do Marquês de Pombal, que floresceu e se impôs a importância da aprendizagem do Português nas escolas básicas. Luís António Verney inicia o seu Verdadeiro Método de Estudar para ser Útil à República e à Igreja, Proporcionado ao Estilo e Necessidade de Portugal (1746) pela afirmação de que é necessário aprender a gramática da língua materna como base e 'porta' para outros es tudos.
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Versão integral do Verdadeiro Método de Estudar na Série Memória da Língua Portuguesa da Biblioteca Nacional Digital: http://purl.pt/118. |
A par desta perspectiva prática do ensino e do estudo da língua, os séculos XVII e XVIII foram pródigos em reflexões filosóficas sobre a linguagem humana e as características universais das línguas. Tendo como exemplo a Grammaire Genérale et Raisonnée, surgiram, em várias línguas gramáticas filosóficas. Em Portugal, a obra mais notável e conhecida neste domínio foi a Gramática Filosófica da Língua Portuguesa, de Jerónimo soares Barbosa.
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Versão integral da Gramática Filosófica da Língua Portuguesa, na Série Memória da Língua Portuguesa da Biblioteca Nacional Digital: http://purl.pt/128. |