|
B2. Morfologia-> constituinte morfológico_categoria morfológica _ palavra _ nome |
VILLALVA, Alina (2003). “Aspectos Morfológicos da Gramática do Português” in MATEUS et alii (2003) Gramática da Língua Portuguesa.
5ª edição revista e aumentada. Lisboa: Caminho.
22.4.1. Flexão nominal (pp. 927-931)
A flexão nominal recobre nomes e adjectivos e, no português, realiza uma categoria morfo-sintáctica, o número, que possui dois valores: singular e plu ral. Dado que, por definição, a flexão é obrigatória e sistemática, espera-se que todos os nomes e todos os adjectivos exibam contrastes de número e que os realizem sempre do mesmo modo. Na verdade, a observação dos dados mostra que a maioria dos nomes e a maioria dos adjectivos apresentam uma forma para o singular e outra para o plural, e que o contraste é realizado pela ausência ou presença de um único sufixo (cf. gato/gatos; esperto/espertos): no singular, a flexão dos nomes e dos adjectivos opera no vazio, ou seja, não existe nenhum sufixo para este valor de número, podendo admitir-se que esse valor de número é assumido por defeito ( 8 ); o plural dispõe de um sufixo próprio que é -s.
No entanto, a observação dos dados também mostra que existem nomes que têm uma flexão defectiva e nomes e adjectivos que, aparentemente, não realizam a flexão em número da forma esperada, ou seja, por recurso ao sufixo -s. Quanto à defectividade, ela pode afectar (i) a forma do singular, como se verifica em anais ou calças, (ii) a forma do plural, o que se verifica nos nomes próprios (cf. Filipe, Luísa), ou (iii) as duas formas, nos casos em que o singular e o plural têm diferentes significados (cf. óculo / óculos, féria / férias, costa / / costas). À excepção dos nomes próprios, todos os outros casos são reduzidos em número e estão lexicalizados, não afectando a gramática da flexão dos nomes. No que diz respeito aos nomes próprios, a restrição deve ser modalizada: eles podem ser flexionados no plural (cf. Filipes, Luísas); o que tipicamente não podem é manter a sua interpretação de nomes próprios, remetendo para uma única entidade, a entidade que é portadora daquele nome próprio e que é singular. O plural de um nome próprio pode remeter para o / um conjunto de entidades que partilhem essa propriedade, como uma dinastia (cf. os Filipes), uma família (cf. os Pachecos), uma associação onomástica (cf. os Joaquins), ou uma mera conjunção de pessoas possuidoras do mesmo nome próprio (cf. as Luísas).
Pode, assim, concluir-se que não é o contraste morfológico de número que está em questão, mas sim a interpretação semântica das duas formas em oposição.
Aliás, a interpretação semântica dos contrastes de número não diverge apenas no caso dos nomes próprios — os massivos também se apresentam como um caso particular. Nos nomes contáveis (e.g. cadeira), o contraste de número remete para um contraste de cardinalidade: o singular refere uma unidade. ou um conjunto de unidades que formam um todo se se tratar de um nome colec tivo como rebanho ou multidão; o plural refere mais do que uma unidade. Nos nomes massivos (e.g. água), o contraste de número tem uma interpretação mais complexa, frequentemente relacionada com uma tipologia ou com uma medida (vejam-se as interpretações mais imediatas para uma sequência como duas águas).
Quanto à forma de realização dos contrastes de número dos nomes e dos adjectivos, a assistematicidade é apenas aparente: pode tratar-se de uma mera alternância gráfica, exigida pela ortografia do português (cf. refém l reféns, bom / bons), ou de alternâncias fonéticas condicionadas pelo contexto fonológico (cf. mão / mãos, pão / pães, sabão / sabões, papel / papéis, azul / azuis, cais / cais.
simples / simples) ( 9 ) .
Nos compostos, a flexão em número é sensível à sua estrutura ( 10 ). Os com postos morfológicos têm um comportamento idêntico ao das restantes palavras (cf. l a). Nos morfo-sintácticos, a flexão opera sobre o constituinte que é o núcleo do composto: nos compostos com núcleo à esquerda, a flexão é marcada apenas nesse constituinte (cf. lb); nos compostos coordenados, a flexão é marcada em todos os constituintes e com idêntico valor (cf. lc); nos compostos formados por reanálise, a flexão não reconhece a estrutura interna, operando como se se tratasse de uma palavra simples ( 11 ) (cf. 1d).
(1) (a) cronómetro cronómetros
luso-brasileiro luso-brasileiros
(b) bomba-relógio bombas-relógio
(c) trabalhador-estudante
trabalhadores-estudantes
surdo-mudo
surdos-mudos
(d) quebra-mar
quebra-mares
22.4.2. Nota sobre género
No português, o género é uma categoria morfo-sintáctica que possui dois valores: masculino e feminino. Quando associado a um nome animado, o mas culino refere geralmente uma entidade de sexo masculino ( 12 ), e o feminino ref ere uma entidade de sexo feminino (cf. 2a). Desta generalização ficam excluídos os chamados nomes epicenos e os sobrecomuns (cf. 2b), que dispõem de um único valor de género qualquer que seja o sexo da entidade que referem. Existem ainda alguns nomes animados, classificados como comuns de dois, cuja forma morfológica é ambígua quanto ao género, podendo porém essa ambiguidade ser resolvida pelo contexto sintáctico (cf. 2c). O valor de género associado aos nomes inanimados não tem um conteúdo referencial definido (cf. 2d):
(2) |
(a) (b) (c) (d) |
gato escritor ladrão cônjuge corvo (um) jornalista mapa copo pêro |
gata pintora mentirosa testemunha águia (uma) jornalista planta taça pêra |
Contrariamente ao que se verifica relativamente ao número, nem todos os adjectivos e nomes admitem contrastes de género. Os seguintes exemplos mostram adjectivos e nomes invariáveis em género:
(3) (a) leve, ruim, simples
(b) casa, pessoa livro, indivíduo pente, mestre, pá
Por outro lado, nos casos em que esses contrastes se manifestam, a sua realização não é homogénea:
(4) aluno ; aluna
juiz ; juíza
barão ; baronesa
europeu ; europeia
águia-macho; águia- fêmea
homem; mulher
A não-obrigatoriedade de existência de contrastes de género e o facto de a sua realização estar a cargo quer de processos estritamente lexicais, pelo contraste de índices temáticos (cf. aluno / aluna; professor / professora) ou pelo contraste de diferentes palavras (cf. homem / mulher; carneiro / ovelha), quer de diversos processos morfológicos, como a derivação (cf. barão / baronesa; judeu / / judia; europeu / europeia; conde / condessa; lavrador / lavradeira; imperador / / imperatriz; espertalhão / espertalhona) e a composição (cf. águia-macho / / águia fêmea), são propriedades que distinguem claramente o género das restantes categorias morfo-sintácticas disponíveis no português, e que justificam a sua análise como uma categoria não flexional ( 13 ), contrariamente ao que a tradição gramatical portuguesa tem consagrado ( 14 ). Os tradicionalmente chamados 'morfemas de género' dos adjectivos e nomes do português não têm qualquer relação com o género (nem com a flexão), mas sim com a classe temática a que cada palavra pertence.
__________________________
(8) Cf. Trask (1993: 73).
(9)Sobre este assunto, ver também 25.5.1.
(10) Sobre este assunto, ver também o capítulo 24.
(11) Geralmente, o constituinte da direita neste tipo de compostos é um nome flexionado no plural. Por esta razão, o valor de número no composto é frequentemente indetermináveis. (cf. (um/muitos) abre-latas)
( 12 ) Há excepções: algumas formas masculinas referem entidades de sexo feminino (cf. mulherão).
( 13 ) A defesa de que o género não é uma categoria flexional no português é apresentada e justificada em Villalva (1994, 2000) e também se encontra, por exemplo, em Hüber (1933, 1986: 167-168, 272), que considera que, no português antigo, desaparecida a flexão casual, a flexão dos adjectivos e dos nomes se reduz à realização do plural. A formação do feminino é considerada como um processo derivacional, ainda que não sejam apresentados, neste autor, argumentos que suportem esta hipótese. Carvalho (1967. 1984: 601) também refere que os nomes não flexionam em género.
(14) Cf. Câmara (1971, 1984: 53), Lopes (1971: 66-67) ou Cunha e Cintra (1984, 1991: 133, 183).