Norma e Ensino do Português,  Ivo Castro

Acção de formação,  FLUL. 19.11.2005

(Excerto)


(...)

As normas são transitórias e relativas. O padrão também. Produzido por movimentos sociais que não são passíveis de planeamento linguístico, o padrão precisa de garantias, que vai buscar a várias fontes:

  • obras de carácter didáctico-normativo (gramáticas, dicionários, prontuários, livros escolares)
  •  a prática interactiva (leitura, escrita e diálogo) da língua na sociedade escolarizada,
    incluindo os diversos media, que gera correntes dominantes de gosto (modas)
  •  a tradição, fundada no património linguístico constituído pela acumulação de textos escritos e orais, estes transmitidos pela memória (clássicos)
  •  a escola


Limitações da atitude normativa
 Quando os gramáticos aceitam uma inovação, ela já está instalada há muito na língua comum. A atitude normativa precisa de acompanhar de perto as descrições linguísticas por razões de realismo.
As gramáticas normativas portuguesas repousam na autoridade dos escritores. Cunha e Cintra apoiam todas as suas regras na abonação simultânea de escritores de pelo menos dois países.
Mas a tradição atribui aos escritores certezas que eles nem sempre têm:

  • o verbo haver, em sentido existencial, tem plural nos dialectos meridionais: também o tem na pena de grandes clássicos:
    Camilo, no manuscrito do Amor de Perdição (f. 123), escreveu: «não tenho a certeza de que houvessem estradas para o Japão». A forma manteve-se na 1.ª edição, revista pelo autor, e só foi substituída por houvesse na 2.ª  ed.
  •  Eça, no manuscrito da Tragédia da  Rua das Flores, escreveu: «houveram risadas», além de vários haviam.
  • Abelaira abona 56 vezes a gramática de Cunha e Cintra. Um dia receou ter construído mal uma frase, foi certificar-se a essa gramática e verificou que ela permitia a construção: mas ficou com a sua dúvida, porque a autoridade que abonava a gramática era ele próprio.
    Segundo parece, tratava-se da concordância entre verbo e sujeito, quando este é o relativo que. Na situação básica, o verbo concorda em pessoa e número com o antecedente do relativo: Fui eu que lhe pedi. Mas quando o antecedente consiste em expressão do tipo um dos+  substantivo, o verbo ou concorda com o singular de um ou com o plural de dos. Embora seja nestes transes que as gramáticas normativas melhor revelariam a sua utilidade, Cunha e Cintra viram-se forçados pelo procedimento conflitivo dos autores a admitir ambas as soluções, apenas exprimindo preferência por uma delas. Dizem: «… o verbo vai para a 3.ª pessoa do plural ou,  mais raramente, para a 3.ª pessoa do singular» (NGPC, p. 490). E ilustram a concordância de plural, que preferem, com uma abonação de Gilberto Amado e outra de Abelaira: És  um dos raros homens que têm o mundo nas mãos. Ou seja, um de entre os homens que têm o mundo nas mãos. Mas a concordância oposta, com o verbo no singular, é praticada por João Ribeiro, um dos patriarcas do normativismo gramatical luso-brasileiro, e por ninguém menor que Camilo, citado em frase de grande oportunidade (A curvado sobre a mesa esconso de seu lavor mercantil, era, aí mesmo, um dos primeiros homens doutos  que escrevia em português sem mácula). Bechara (Moderna Gramática Portuguesa. 1999, p. 562), a respeito do mesmo problema, dá duas abonações contraditórias (Este era um dos que mais  se doíam do  procedimento de D.  Leonor contraposta a Um dos nossos escritores modernos  que mais abusou do talento) que foram colhidas a 9 pgs. de distância uma da outra na mesma obra de Alexandre Herculano.

Conclusão
A variação, com as hesitações e contradições que gera, é inerente à produção linguística e textual. A atitude normativa não pode combater, nem ignorar, este facto natural. Deve evitar, perante variantes, decisões correctivas drásticas, reservando-as para as situações de erro. Mas a fronteira entre práticas linguísticas erradas e práticas toleráveis é muitas vezes difícil de traçar.

 

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