A. Língua, Comunidade linguística, Variação e Mudança

I. H. FARIA et al. (1996). “Aspectos da sintaxe do Português de Moçambique",
Introdução à Linguística Geral e Portuguesa. Lisboa: Ed. Caminho, (pp.313-322).

(excerto)

Moçambique situa-se na zona linguística da família de línguas comummente designadas como bantu.

O Português, escolhido como língua oficial a partir da independência (1975), é falado por menos de 30% da população, e constitui, para a quase totalidade dos seus falantes, uma língua não materna, usada como meio de instrução e comunicação pública. Falar do Português de Moçambique (a partir de agora, abreviadamente, PM) significa, por conseguinte, descrever propriedades de uma variedade linguística em formação, que não apresenta, dado o seu estatuto de língua não materna, a (relativa) estabilidade das variedades europeia ou brasileira.

O estudo da sintaxe do PM que aqui se apresenta foi realizado com base em: (a) textos escritos extraídos de jornais, revistas e redacções de estudantes universitários; (b) textos orais recolhidos através de entrevistas, igualmente realizadas junto de uma população universitária (cf. Gonçalves, 1990).

No discurso dos falantes observados, registam-se fenómenos que ora apresentam um carácter disperso ora ocorrem de forma mais regular. Neste trabalho, não está incluído o primeiro tipo de fenómenos, embora não seja de excluir a possibilidade de eles virem a constituir áreas relevantes na investigação sobre a sintaxe do PM. Estão neste caso, por exemplo: (a) a ordem de palavras (cf. «Sempre o homem tem altos e baixos»); (b) a sintaxe dos quantificadores (cf. «Toda a minha família não trabalha»); (c) alguns aspectos da morfologia flexional (cf. «Escreva o teu nome»).

A caracterização que aqui se propõe da sintaxe do PM constitui, assim, uma tentativa de generalização a partir de casos que já ocorrem, de forma bastante sistemática e regular, no discurso oral e escrito de falantes do PM.

Tendo em vista o enquadramento destes fenómenos na gramática do PM, eles serão aqui organizados em três áreas principais. Em primeiro lugar, serão descritos casos em que é afectada a estrutura argumental dos verbos. Em seguida, tratar-se-á de questões relacionadas com o uso dos pronomes clíticos. Por último, referir-se-ão mecanismos de encaixe de orações subordinadas no PM.
(…)

Os pronomes clíticos no PM
Foi já assinalada acima a modificação que se verifica no PM relativamente à escolha da forma pronominal «lhe» associada à posição de SN -O [+ RUM). Para além desta, há ainda a referir as alterações que se observam no comportamento sintáctico dos pronomes clíticos, assim como nos critérios de utilização dos clíticos de flexão reflexiva.

Como em qualquer um dos fenómenos já aqui descritos, os padrões de ordem dos pronomes clíticos no PM são ainda caracterizados por uma certa instabilidade. Assim, além de casos de alteração da posição dos clíticos em contextos em que ocorre um verbo auxiliar (cf. «O professor não tinha nos dado a aula.», «Ele vai me ter que demonstrar.»), a tendência que se apresenta de forma mais sistemática diz respeito à colocação dos clíticos em posição pós-verbal em orações subordinadas:

(14) Há pessoas [que opõem-se contra a religião].

(15) A lesada disse [que aqueles desconhecidos cercaram-na].

Como os exemplos acima mostram, o clítico ocorre em posição pós-verbal (e não pré-verbal, como exigiria a norma europeia), num contexto em que o complementador se encontra realizado lexicalmente. O padrão escolhido na realização deste tipo de construções parece assim idêntico ao que é adoptado em frases simples afirmativas, em que ocorre posposto ao verbo.

No PM, os clíticos reflexivos argumentais, isto é, aqueles que ocorrem com verbos transitivos (como, por exemplo, [«lavar» SN) / «lavar-se»), são usados em geral de acordo com a norma europeia. Quanto aos clíticos reflexivos não argumentais, isto é, aqueles que não estão associados a uma posição argumental vazia, subcategorizada pelo verbo (como é o caso de «arrepender-se» ou «estragar-se»), parece processar-se uma reanálise dos critérios da sua utilização.

Esta reanálise, por um lado, consiste na tendência para a supressão deste tipo de clíticos do PE e, por outro, está associada à criação de um clítico de flexão reflexiva, utilizado com verbos do PE que não requerem a sua presença.
Observem-se em primeiro lugar os casos de supressão dos clíticos reflexivos não argumentais em (16)-(17) (vejam-se ainda as frases (11)-(13) do Corpus-Anexo):

(16) A tal namorada foi queixar ao pai.
(=...queixar-se ao pai)

(17) Muitas vezes eu atrasava às aulas.
(=...atrasava-me para as aulas)

De uma maneira geral, parece legítimo considerar que a supressão deste tipo de clíticos no PM decorre do facto de eles não estarem claramente associados a um papel sintáctico ou semântico. Como se pode verificar, quer se trate dos chamados clíticos inerentes (usados com verbos como «queixar-se» na frase (16)) ou dos clíticos anticausativos (usados com verbos como «atrasar-se» na frase (17)), em nenhum dos casos a presença destes clíticos, exigida pela norma europeia, se destina a assinalar a existência de uma posição subcategorizada pelos verbos com que ocorrem (ao contrário do que acontece com os clíticos argumentais).

Entretanto, conforme se disse, em aparente contradição com este fenómeno, ocorrem no discurso em PM frases em que é usado um clítico reflexivo não argumental — vejam-se os exemplos (18)-(19) e também as frases (14)-(15) do Corpus-Anexo:

(18) O rapaz simpatizou-se com essa moça.
(=...simpatizou com essa moça)

(19) O Fernando preferiu-se da tal rapariga.
(= . preferiu tal rapariga)

Do ponto de vista dos falantes do PM, estas frases podem interpretar-se como assinalando a afectação das entidades que os SNs com a função de SU (*o rapaz» em (18) e «o Fernando» em (19)) designam pelas acções descritas pelos verbos «simpatizar» e «preferir».

Em suma, no PM não parece haver contradição na forma como os clíticos não argumentais são utilizados. Parece mais plausível a hipótese de se tratar de uma reanálise do seu papel nos enunciados, segundo o qual o uso deste tipo de clíticos fica reservado para casos em que desempenham um papel semântico, deixando de se usar os clíticos semanticamente vazios do PE.

Frases (11) a (15) do Corpus

(11) «Escreveu uma carta despedindo o padre.»
(...despedindo-se do padre)

(12) «Eu não gostaria de desviar do ramo.»
(...de me desviar...)

(13)
«Ouvi um ruído e assustei.»
(...e assustei-me)

(14) «As pessoas da cidade beneficiam-se da moda.»
(...beneficiam da moda)

(15) «Parecia troçar-se dele.»
(...troçar dele)


"Aspectos da sintaxe do Português de Moçambique"
Perpétua Gonçalves