B6. Semântica ->Modalidade

OLIVEIRA, Fátima (2003).“Modalidade e modo” in MATEUS et al, Gramática da Língua Portuguesa. 5ª edição revista e aumentada. Lisboa: Caminho (pp. 245-247).

9.1. Modalidade

Delimitar o conceito de modalidade depende em grande medida da concepção lógica (filosófica ou matemática) ou linguística que se escolher (1). As modalidades clássicas são acerca da própria noção de verdade (aléticas), mas muitos outros tipos de modalidade podem ser considerados, como por exemplo, epistémicas, relacionadas com conhecimento e crença, temporais, deônticas, relacionadas com obrigação e permissão, bulomaicas, relacionadas com desejo,  avaliativas e causais (2).
Do ponto de vista linguístico, podemos considerar que a modalidade é a gramaticalização de atitudes e opiniões dos falantes. Esta abordagem tão vaga evidencia que se trata de um fenómeno de grande amplitude, pois não só existem numa língua formas diversas de expressar um mesmo tipo de modalidade como também uma expressão pode apresentar diferentes modalidades.
Os conceitos modais podem ser expressos nas línguas naturais através de uma grande variedade de formas. A maneira mais comum é através de verbos  modais como poder e dever, mas também através de verbos como sabe, crer, permitir, obrigar; precisar de, ter de. Advérbios de frase como possivelmente, necessariamente, provavelmente e adjectivos como possível,  provável, capaz também apresentam sentido modal (3). Certos afixos derivacionaís como -vel, que formam adjectivos deverbais (lavável, concebível, solúvel), podem também contribuir para a expressão da modalidade e certas frases genéricas admitem a expressão de uma capacidade ou possibilidade. Há também alguns tempos gramaticais que podem criar situações alternativas, como é o caso do Imperfeito, do Futuro e do Condicional, para além do contributo dos modos (4).

Vejamos alguns exemplos:

(1) A Maria pode sair a qualquer momento.
(2) O Rui deve sair amanhã.
(3) O Jorge crê que a Ana saiu.
(4) A Ana permite que a filha saia.
(5) Provavelmente a Joana saiu.
(6) É possível que a Maria chegue atrasada.
(7) Esta peça de roupa é lavável à máquina.
(8) O Zé corre/corria dez quilómetros sem parar.
(9) Eu agora era a mãe e tu eras o filho...
(10) A esta hora, o Rui já estará em casa.
(11) Come a sopa!
(12) A Ana quer comprar urna casa que tem dois quartos.
(13) A Ana quer comprar uma casa que tenha dois quartos.

Algumas destas frases merecem desde já um breve comentário. As frases (1) e (2) com os verbos modais poder e dever respectivamente, têm acessíveis, em cada um dos casos, pelo menos dois significados diferentes. Assim, a primeira frase tanto pode significar que “é possível que a Maria saia”, como “a Maria tem permissão para sair”. A segunda frase apresenta os seguintes significados:
“é provável que o Rui saia” ou “o Rui tem a obrigação (fraca) de sair”. No exemplo (7) o adjectivo lavável tem o significado de “pode lavar-se” e o exemplo (8) pode ser parafraseado por “o Zé é capaz/pode correr dez quilómetros sem parar”. Em (9), o Imperfeito cria um mundo alternativo, dado que é fácil compreender que este tempo não tem, neste contexto, uma informação temporal em virtude da co-ocorrência com o advérbio agora. Em (10),  o Futuro introduz incerteza,  o que é verificável no contraste com a forma de Presente (“a esta hora, o Rui já está em casa”). O modo Imperativo está relacionado com a modalidade deôntica (11) e a alternância Indicativo/Conjuntivo induz leituras diferentes em várias construções, como é o caso de (12)-(13). No primeiro destes dois exemplos assere-se a existência da casa e no segundo isso não é possível (5).


(1) Esta questão tem sido objecto de análise ao longo dos séculos desde Aristóteles, tendo sido propostos sistemas de formalização no princípio do século xx por C. I. Lewis, aos quais
foi atribuída uma sernãntica em meados do mesmo século por Kripke e Hintikka.
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(2) Veja-se a este respeito Rescher (1968: 24-25). (voltar)

(3) Note-se que estes advérbios podem modificar qualquer categoria não nominal: veja-se Costa e Costa (2001) e o ponto 11.6 sobre advérbios. Estes adjectisos modais entram em construções completivas como “é possível que / é provável que/é capaz de”. Veja-se também o ponto 15.1. (voltar)

(4) ) Veja-se a este respeito o capítulo 6. Há uma longa tradição em considerar o tempo futuro como ramificado, e assim aparentado à modalidade, em virtude de se desconhecer no momento presente qual a situação que vai ter lugar num tempo posterior, havendo portanto várias alternativas. Não se deve, no entanto, confundir uma visão da categoria Tempo com as diferentes realizações que pode ter na língua. Uma coisa é a referência a um tempo futuro, outra é o significado dos tempos gramaticais Futuro Simples e Futuro Composto em português europeu. (voltar)

(5) Veja-se, a este respeito, 9.2 sobre o modo.