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José G. Herculano de Carvalho (1983). Teoria da Linguagem, Natureza do Fenómeno Linguístico e análise das línguas, vol.I. Coimbra: Coimbra Editora Limitada (6.ª ed). |
Significação objectiva e significação gramatical * (p. 198 e sgts.) |
Toda a significação se dirige para a realidade, que o sujeito que maneja os sinais conhece e faz conhecer a outros. Mas a variedade sem limites do mundo do real, — do mundo das res (nota 1), de tudo o que é susceptível de se tornar objecto de conhecimento —, pode ser cognitivamente apreendida, e logo significativamente manifestada, sob diversas perspectivas, não ilimitadas em número e essência como os objectos a captar, mas, pelo contrário, bem limitadas e mais ou menos claramente definidas, de modo a permitir a sua apreensão ordenada e inteligível. Para o verificarmos, bastar-nos-á tomar um qualquer texto de qualquer idioma, que o analisemos decompondo-o nas diversas entidades significativas menores que o constituem, e que observemos como cada uma delas realiza a função significativa que lhe é própria, isto é, o seu modo peculiar de referência à realidade. Seja esse texto para nós a seguinte frase — a primeira quintilha de um poema de Fernando Pessoa: Analisando-o em palavras significativas (não em vocábulos ou palavras fónicas) encontraremos — confirmando a análise efectuada pela escrita — vinte e duas dessas unidades (ou talvez 24 se contarmos do e da (“do, muro da estrada”) como cada uma das palavras associadas; de + o, de + a), a cada uma das quais corresponde sem dúvida um certo valor significativo ou significado. Se em seguida repartirmos essas palavras, distribuindo-as por dois grupos, reunindo no primeiro conta (contar), lenda, dormia (dormir) princesa, encantada (encantar), despertaria (despertar,) infante, viria (vir), muro e estrada, e no segundo o e a, que, um e uma, a, quem, só, de, do, da, poderemos observar sem grande esforço que há algo de muito diverso na significação dos dois grupos, na relação que liga os significantes do primeiro e do segundo, respectivamente, à realidade. Essa diversidade traduz-se talvez fundamentalmente, no facto de que os primeiros, mesmo tomados isoladamente - destacados deste ou de outro qualquer contexto concreto em que ocorram - trazem consigo uma representação mais ou menos bem definida de algo da realidade, significam um objecto (ou o seu conceito) mais ou menos claramente delimitado, que com um pouco de esforço seremos capazes de apontar, de descrever ou até, embora imperfeitamente, de definir; ao passo que a significação dos segundos é muito mais vaga e imprecisa, de tal modo que para a definir — para a exprimir noutras palavras — teremos de despender um esforço muito maior, que talvez seja afinal de contas baldado: que significam de facto a, que, de? A diversidade no modo de significar pode ainda referir-se à circunstância de que, em correspondência com os significantes do primeiro grupo (contar, lenda, etc.), encontramos na realidade mesma objectos (existentes ou pensados como existentes: fadas, gnomos, dragões, encantamento, etc.)- substâncias, movimentos, qualidades - directa ou indirectamente apreensíveis pelos sentidos (casa, muro, estrada, dormir...) ou pelo menos referíveis a uma experiência, vivência íntima em relação com uma experiência exterior, sensível: a beleza, a bondade, se não correspondem imediatamente a uma «coisa» fisicamente apreensível, referem-se sem dúvida a uma vivência espiritual e, mediatamente, à experiência sensível de uma paisagem, de um quadro, de um corpo sentidos como belos, de um acto, de uma palavra, de um homem sentidos como bons, porque nessa paisagem ou quadro, na conduta desse homem, nesse acto, nessa palavra experimentamos interiormente algo que apreendemos como belo ou como bom e a que chamamos beleza ou bondade. Nada disso se passa com as palavras do segundo grupo, às quais nem directa nem indirectamente correspondem quaisquer objectos do mundo real, embora sem dúvida signifiquem algo em relação com, e em função da representação desses mesmos objectos. À significação realizada pelos significantes do primeiro grupo, quer nas palavras, quer nessas entidades menores que as constituem (os monemas), daremos o nome de significação objectiva; à que é realizada pelos do segundo grupo, a de significação gramatical (nota 2). Definiremos a significação objectiva [Cf. Mattoso Câmara. Princípios, pp. 91-92] como a representação linguística dos objectos que constituem o mundo da realidade, tanto exterior como interior, materiais ou imateriais, reais ou ideais, concretos ou abstractos, obiectos considerados em si mesmos e apreendidos quer como substâncias, quer como processos, quer como propriedades ou qualidades (inerentes estas às substâncias ou aos processos). De acordo com essas três possibilidades de apreensão, as palavras portadoras de significação objectiva pertencerão às classes (que já conhecemos do estudo escolar da gramática e de que voltaremos a ocupar-nos mais tarde) dos substantivos, dos verbos e por um lado, dos adjectivos (exprimindo qualidades inerentes às substâncias), por outro, dos advérbios de modo (manifestando qualidades inerentes aos processos). |
Nota 1 res!; 2.° que no seu uso propriamente interjeccional se mantêm as duas e. mais importantes razões acima invocadas para as não considerarmos como verdadeiras palavras e que nesse caso a sua significação denotativa se enfraquece consideravelmente, em proveito da significação conotativa. Quer dizer: partindo de extremos opostos — ai! do simples grito instintivo, inteiramente não linguístico, viva! do acto verbal plenamente consciente e finalístico —, uns enriquecendo-se outros empobrecendo-se significativamente, os significantes do tipo de ai! e os do tipo de viva! vieram a encontrar-se reunidos numa mesma classe de formas significativas linguisticamente marginais. A deslexicalização total pode encontrar-se em algumas interjeições como Viva!, fórmula de saudação (de viva, conjuntivo de viver, com valor optativo), a respeito da qual se perdeu inteiramente a consciência dos elementos etimológicos da sua formação. |
Nota 2 Sobre esta distinção v. A. Pagliaro, .«Il linguaggio come conoscenza,, pp. 67 ss. («Questo sapere [o saber acerca do real], com’è deposi tato nella lingua, non è inqualificato, ma è un sapere propriamente linguistico in cui si possono distinguer due aspetti: uno che può dirsi reale [objectivo, como dizemos], in quanto costituisce una classificazione di quelJo che ci circonda, resa possibile mediante il sinibolo significante di una categoria [as que determinámos como da substância, qualidade e processo]; e l’altro, che può dirsi propriamente grammaticale, diretto alla determinazione del generale, affinché sia portato ad esprimere il particolare, p. 76); Mattoso Câmara. Princípios,. pp. 91-92; Cli. C. Fries, The Structure of English, New York 1952, p. 106; e ainda a nota 3 deste capítulo. |
Nota 3 Cf. com a definição escolástica dos termos (palavras) categoremáticos e sincategoremáticos (correspondentes ‘grosso modo’ ao que designaremos por lexemas e categoremas respectivamente): Tertia divisio termini est in categorematicum et syncategorernaticum, quasi latine dicas significativum seu praedicativum et consignificativum. Categorematicus est, qui aliquid per se significat. (...) id est significat aliquid per se, id est non ut adverbium aut modificatio, sed ut res quaedam, sicui cum dico homo. Terminus syncategoremasicus est, qui aliqualiter significat, ut adverbium velociter, faciliter, signum omnis, quidam. etc. Et dicitur aliqualiter significare, non qua vere et proprie non significet, sed quia significatum eius loa repraesentatur ut res per se, sed ut modus rei, id est exercendo modificationem alterius rei’ (João de S. Tomas, o. cit., 1. P. Summul. Lib. 1, Cap. IV, pp. 1 lb-12a; trad ingl. Outlines of Formal Logic, p. 35; v. também I.P. Quaest. Disput. Q.L, Art. II, pp. 91b--92a, e Art, VI, p. 109). Cf. igualmente Franz Manthey, Die Sprachphilosophie des III. Thomas von Aquin, Paderbon 1937, pp. 110 ss.—O elemento comum às quatro espécies de significação gramatical — que então talvez permita urna definição positiva desta — parece estar em que ela se refere imediatamente, não aos objectos, mas aos sinais (melhor, aos signos na dualidade significante-significado) que os representam, e, mais genericamente, a ‘conceitos’ meramente linguísticos, sendo portanto primariamente uma significação interna, especificamente linguística, enquanto realizada no interior do próprio sistema da língua. V. o que segue e particular mente as notas 4 e 11 |
* Na expressão "significação objectiva", o termo "objectiva" pode ter, na Terminologia Linguística, um equivalente em "lexical". Esta relação entre significação lexical e significação gramatical evidencia-se na definição de Palavra que ocorre no Dicionário Terminológico:
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