Tradicionalmente e no que toca o tratamento gramatical, as MODALIDADES têm estado quase exclusivamente associadas aos modos verbais e aos verbos modais enquanto categorias gramaticais de expressão da atitude do locutor, quer em relação ao conteúdo proposicional ou valor de verdade do seu enunciado, quer em relação ao alocutário a quem o anunciado se destina.
Enquanto prática linguística em interacção, todo o enunciado apresenta um determinado grau de modalização. Tal modalização consiste essencialmente numa modificação introduzida pelo locutor ao nível da predicação, como resultado das condições postas à sua realização e da relação entre os elementos envolvidos na produção.
Locutor, Alocutário, Espaço, Tempo, Discurso Anterior e Universo de Referência, os elementos envolvidos na produção de qualquer enunciado, não mantêm entre si relações arbitrárias nem apresentam constantemente, entre si, o mesmo tipo de relações.
Diferentes tipos de relações determinam expressões diferentes ao nível do enunciado.
Consideremos quatro tipos de modalidades (1).
1. Modalidades lexicalizadas - com expressão nos verbos modais e advérbios;
(1) (a) Tenho que sair logo à noite.
(b) Talvez saia logo à noite.
2. Modalidades proposicionais - que determinam o valor de verdade das proposições delas dependentes como necessário, contingente, possível ou impossível;
(2) (a) Tenho a certeza que a Ana aparece.
(b) Não tenho a certeza que a Ana apareça.
(c) É possível que a Ana apareça.
3. Modalidades ilocutórias - que exprimem os tipos e níveis de classificação e convenção das intenções do locutor, seguindo a forma e o conteúdo semântico de cada acto ilocutório (A. I.);
(3) (a) Considero que deves abrir a porta. (A. I. representativo)
(b) Abre a porta! (A. I. directivo)
(c) Peço desculpa por teres de abrir a porta. (A. I. expressivo)
4. Modalidades axiológicas ou pragmáticas - que regulam a própria interacção, seleccionando os enunciados de acordo com os respectivos contextos de acção;
(4) (a) Abre a porta imediatamente. (A. I. directivo directo)
(b) Importas-te de abrir a porta? (A. I. directivo indirecto)
Do ponto de vista lógico, têm sido tradicionalmente considerados três tipos de modalidades:
a. Modalidades aléticas ou aristotélicas - que funcionam ao nível dos estados de coisas.
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b. Modalidades epistémicas
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c. Modalidades deônticas
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Ao nível dos estados de coisas, as relações estabelecem-se como necessárias, contingentes, possíveis ou impossíveis. (Ver exemplos (5), (8) e (11).)
Ao nível do tipo de conhecimento que cada locutor tem dos estados de coisas:
a) Uma relação necessária é tida como certa (modalidade epistémica, ver (6)) ou como obrigatória (modalidade deôntica, ver (7)):
(5) Modalidade alética:
"Fumar é mau para a saúde." (necessário)
(6) Modalidade epistémica:
"Se continuas a fumar ficas doente." (certo)
(7) Modalidade deôntica:
"É proibido fumar." (obrigatório)
b) uma relação contingente é tida como contestável (modalidade epistémica, ver (9)) ou como facultativa (modalidade deôntica, ver (10)):
(8) Modalidade alética:
"O homem pode ou não trabalhar." (contingente)
(9) Modalidade epistémica:
"O homem nem sempre trabalha." (contestável)
(10) Modalidade deôntica:
"O homem é livre de não trabalhar." (facultativo)
c) uma relação possível é tida como plausível (modalidade epistémica, ver (12)) ou como permitida (modalidade deôntica, ver (13)):
(11) Modalidade alética:
"Um homem é capaz de chorar." (possível)
(12) Modalidade epistémica:
"Se continuas a arreliar o teu irmão, ele ainda chora." (plausível)
(13) Modalidade deôntica:
"Não é vergonha chorar." (permitido)
Esta relação, explícita ou implícita, entre os estados de coisas e o locutor permite apresentar uma outra classificação de modalidades distinguindo entre modalidades de re e modalidades de dicto.
Uma modalidade de necessidade (L) ou de possibilidade (M) de dicto é atribuída a uma proposição (dictum) enquanto uma modalidade de re é atribuída a algo (res) por posse de determinada propriedade. Ao afirmarmos que uma modalidade é de dicto estamos de facto a dizer que uma determinada proposição é necessariamente ou possivelmente verdadeira. Ao afirmarmos que uma modalidade é de re estamos apenas a dizer que determinada coisa ou objecto necessariamente ou possivelmente tem uma determinada propriedade.
Exemplificando: no caso da modalidade de re, x tem a propriedade de ser necessariamente Ø:
(14) (x) LØx
como em (14a)
(14a) ('Solteiro')x é um homem que tem a propriedade de ser necessariamente não casado.
No caso da modalidade de dicto, x não é uma propriedade mas uma proposição necessariamente verdadeira:
(15) É necessariamente não casado um homem que é solteiro.
Uma língua natural pode traduzir referências transparentes ou opacas que, respectivamente, distinguem uma modalidade de re de uma modalidade de dicto. Nas frases (16) vê-se que o nome próprio João está, no caso de (16a), fora do operador modal (modalidade de re), o mesmo não acontecendo em (16b):
(16) (a) O João é capaz de vir.
(referencia transparente de o João explicitando a interpretação de que 'vir' é uma propriedade possivelmente aplicável a João)
(b) É possível que o João venha.
(referência opaca de o João. Deste modo é a proposição no seu conjunto que é possivelmente verdadeira)
Se se considerar que as propriedades podem ser divididas em formais e materiais, as modalidades de re podem ser eliminadas em favor de modalidades de dicto.
São propriedades formais aquelas cuja pertença a um objecto é sempre necessária ou impossível.
São propriedades materiais aquelas cuja pertença a um objecto é sempre contingente, não se tratando portanto nunca de urna pertença necessária ou impossível.
A análise das línguas naturais apresenta argumentos em favor desta hipótese. A distinção entre propriedades formais e propriedades materiais pode relacionar-se com a distinção entre predicadores que exprimem propriedades individuais e predicadores que exprimem manifestações temporalmente limitadas de individuais.
Por outro lado, se nos debruçarmos sobre o processo de produção de um enunciado, temos certamente que entrar em linha de conta tanto com os níveis de conhecimento que o locutor tem dos estados de coisas, como com as relações sociais dos sujeitos em interacção, as quais se reflectem nas modalidades enquanto propriedades materiais e formais com expressão nas modalidades epistémicas e deônticas.
É importante assim considerar a forma como o sujeito enquanto locutor se "diz" no enunciado, ou aquilo que o enunciado "diz" do locutor enquanto sujeito, tendo ainda em conta que, num enunciado onde, aparentemente, nada se "diz" do locutor, as modalidades em presença no enunciado são elas próprias avaliadas pelo locutor como necessárias, possíveis, contingentes ou impossíveis.
Repare-se como os enunciados que se seguem traduzem diferentes modalidades do sujeito enquanto locutor pela utilização de pronomes de 1ª ou 3ª pessoa ou mesmo por recurso a categorias nominais, ou formas de Infinitivo e Gerúndio:
(17) (a) Eu acho que o tabaco faz mal à saúde.
(b) Pensa-se que o tabaco faz mal à saúde.
(c) Uma pessoa sabe que o tabaco faz mal à saúde.
(d) Fumarmos pode ser perigoso.
5.5.1. Modos verbais
A modalidade, i.e., a atitude do locutor em relação ao estado de coisas expresso pelo enunciado, pode ser explicitada em Português pelo modo do verbo. O verbo tem assim a capacidade de exprimir através dos modos a relação modal entre locutor e estado de coisas.
O modo INDICATIVO (IND) aparece fundamentalmente ligado a um estado de coisas reconhecido pelo locutor como necessário ou com um grau elevado de probabilidade.
O modo CONJUNTIVO (CONJ) aparece fundamentalmente ligado a um estado de coisas reconhecido pelo locutor ou como possível ou como contingente.
O emprego dos modos esta ligado aos tipos de actos ilocutórios e a sua selecção faz-se em função dos tipos de fases em que se inserem.
Existem factores que, ao adquirirem preponderância na interacção verbal, fazem com que a atitude do locutor não seja apenas determinada pelo grau de conhecimento que este tem do estado de coisas do conteúdo proposicional. Este é o caso, por exemplo, de actos ilocutórios directivos, associados vulgarmente, mas não exclusivamente, ao modo IMPERATIVO (IMP) onde o factor 'alocutário' se torna preponderante.
Assim, se o objectivo de um acto ilocutório directivo é tentar que o alocutário realize futuramente o conteúdo proposicional da frase enunciada, a relação preponderante é a existente entre locutor e alocutário; a realização futura do conteúdo proposicional por parte do alocutário faz com que, no próprio momento de enunciação, a atitude do locutor em relação ao conteúdo proposicional seja contingente. Dado o carácter distinto de cada um dos tipos de relações entre os factores constitutivos da interacção verbal, é possível reconhecer:
a) uma certa correspondência directa entre os modos INDICATIVO e CONJUNTIVO e as modalidades aléticas necessário e possível, quando a interacção é dominada pela relação entre os factores locutor e estado de coisas (universo de referência);
b) uma correspondência indirecta entre o modo IMPERATIVO e a modalidade alética contingente, uma vez que, num acto de ilocução directivo, tanto o objectivo de ilocução como a própria interacção são dominados pela relação entre os factores locutor e alocutário. Assim, e ao contrário do que acontece com os outros modos, o imperativo é facilmente substituível quer pelo CONJUNTIVO quer pelo próprio INDICATIVO.
Essa substituição revela que a expressão da relação locutor / alocutário depende directamente de modalidades deônticas. Se a modalidade é obrigatória o enunciado admite a realização do INDICATIVO; se a modalidade é permitida ou facultativa o enunciado admite a utilização do CONJUNTIVO (2).
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(1) Classificação apresentada em PARRETT 76.
(2) Não consideramos o condicional como modo verbal. O condicional ou exprime um futuro do passado ou ocorre em enunciados hipotéticos ou contrafactuais.
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MATEUS, M.H.M, A.M.BRITO, I.DUARTE e I.H.FARIA (1989). Gramática da Língua Portuguesa, 2ªedição, Ed, Caminho, Lisboa (pp. 102-110).