Maria Henriqueta Costa Campos

 

11.2 Valores Modais

O valor modal (ou modalidade) de um enunciado resulta, como atrás dissemos, da localização da relação predicativa em relação ao parâmetro S0, sujeito da enunciação. Por outras palavras, o valor modal de um enunciado exprime diferentes tipos – e para cada tipo diferentes graus – de relação entre o enunciador e a relação predicativa subjacente a esse enunciado, afectada de valores referenciais das restantes categorias gramaticais.

O facto de, na nossa descrição, a categoria gramatical modalidade ser a última a ser tratada não significa que o seu valor só seja construído quando já estão construídos os valores das outras categorias gramaticais. Embora nem sempre seja visível, há interdependência na construção dos valores referenciais de diferentes categorias gramaticais. Já atrás referimos essa interdependência a propósito das categorias aspecto, tempo e modalidade (...).

 

11.2.1 Tipos de modalidade

Uma mesma relação predicativa pode estar na base de um conjunto de enunciados com valores modais de tipos e graus diferentes. Vamos definir alguns tipos e graus.

11.2.1.1 Modalidade epistémica

Exemplifiquemos a partir da relação predicativa <plantar, o Gil, uma árvore>:

(82)

a. o Gil plantou uma árvore

b. o Gil não plantou uma árvore

c. o Gil deve ter plantado uma árvore

d. acho que o Gil plantou uma árvore

e. talvez o Gil tenha plantado uma árvore

f. o Gil pode ter (ou não ter) plantado uma árvore

Os enunciados acima podem constituir resposta à pergunta o Gil plantou uma árvore?. Portanto, os seus valores modais são do mesmo tipo, embora de diferentes graus. Podemos dizer que os enunciados (82a) a (82f) exprimem a atitude do enunciador em relação à validação ou não-validação da relação predicativa: o enunciador valida a relação predicativa dizendo (sim), o Gil plantou uma árvore, ou não a valida, dizendo (não), o Gil não plantou uma árvore, ou prefere não se responsabilizar inteiramente pela validação (ou não-validação). Constrói, então, relativamente a essa validação, uma distância maior ou menor, distância que, aparentemente, exprime o seu grau de conhecimento relativamente ao acontecimento construído. Chamaremos epistémico a este tipo de valor modal (ou modalidade) (1)

Em (82a), o enunciador assume inteiramente a validação da relação predicativa. Dizemos, então, que o enunciado tem valor de asserção estrita positiva.

Em (82b) o enunciador assume inteiramente a não-validação da relação predicativa. O enunciado tem, portanto, valor de asserção estrita negativa. Pode dizer-se ainda que os valores modais de (82a) e (82b) são do domínio do certo.

Nos restantes enunciados, o enunciador recusa assumir, ou só assume parcialmente, a validação (ou não-validação) da relação predicativa. Os valores modais respectivos são do domínio do não-certo.

Os valores modais dos enunciados (82) podem ser representados sobre uma escala de valores assertivos. Ao pólo positivo corresponde a asserção estrita positiva ou negativa (assunção total). No pólo negativo situa-se a recusa total, isto é, a assunção nula. Desse valor pode ser exemplo o enunciado (82f), em que é construída a equiponderação entre "plantou" e "não plantou": o enunciador exprime, linguisticamente, que não dispõe de quaisquer elementos que lhe permitam validar ou não-validar a relação predicativa.

Os valores de (82c) a (82e) situam-se em diferentes pontos da escala, e, dos três, é (82c) que está mais próximo do pólo positivo (o enunciado o Gil não deve ter plantado uma árvore, situar-se-ia num ponto igualmente próximo do pólo positivo). O seguinte teste empírico permite confirmar o que acabamos de dizer:

(83)

a. *o Gil plantou uma árvore mas pode ser que não tenha plantado

b. *o Gil deve ter plantado uma árvore mas pode ser que não tenha plantado

c. acho que o Gil plantou uma árvore, mas pode ser que não tenha plantado

A má-formação de (83a) resulta da incompatibilidade entre os valores modais dos dois membros ligados pelo conector opositivo mas. Na mesma situação de enunciação, para o mesmo enunciador e para a mesma relação predicativa, não é possível que o enunciador construa um valor de asserção estrita (assunção total) e, simultaneamente, assuma parcialmente, ou recuse assumir, essa validação (ou não-validação).

Em (83b), a má-formação resulta do mesmo tipo de incompatibilidade, e mostra-nos que o valor modal marcado pelo verbo dever se situa num ponto próximo do pólo positivo, na escala de valores assertivos.

Quanto a (83c), não há qualquer incompatibilidade entre os valores modais dos dois membros do enunciado. A modalização marcada por um verbo de opinião (achar, pensar, etc.) restringindo ao enunciador o valor assertivo construído, permite não excluir um valor modal em que o grau de assunção é menor, por ser baseado em dados diferentes daqueles de que ele próprio, enunciador, dispõe.

Os valores modais de (82c) e (82d) são do mesmo tipo, mas têm graus diferentes, estando (82c) mais próximo da asserção estrita. O valor modal marcado pelo verbo dever pode ter a seguinte interpretação: o enunciador não dispõe de um conhecimento que lhe permita validar (ou não-validar) a relação predicativa; mas tem outros conhecimentos, que ele interpreta como indícios, nos quais se baseia para construir um valor modal quase-certo, próximo da asserção estrita. Podemos, assim, explicar melhor a má-formação de (83b): o enunciador não pode, na mesma enunciação em que constrói um valor modal quase-certo, construir um valor modal – a assunção nula – que corresponde à ausência de qualquer conhecimento que permita assumir, total ou sequer parcialmente, a validação (ou não-validação) da relação predicativa.

 

11.2.1.2 Modalidade apreciativa

Vejamos outro tipo de valores modais, em enunciados construídos a partir da mesma relação predicativa:

(84)

a. felizmente, o Gil plantou/está a plantar/vai plantar uma árvore

b. foi bom que o Gil tenha plantado/plantasse uma árvore

c é bom que o Gil esteja a plantar uma árvore

d seria bom que o Gil plantasse uma árvore

Os enunciados (84) marcam a construção de um juízo de valor, de uma apreciação, sobre uma relação predicativa já constituída e validada (ou validável). Trata-se de um valor modal apreciativo (ou modalidade apreciativa).

Em (84a), a modalização apreciativa (marcada pelo advérbio felizmente) incide sobre um valor assertivo que é construído na mesma enunciação. O modo indicativo (no pretérito, no presente ou no futuro) que se combina com o predicado verbal marca a construção, em Sit0, do valor assertivo da relação predicativa, quer T2 seja localizado temporalmente como anterior, simultâneo ou posterior em relação a T0.

Nos restantes enunciados (84), não há construção do valor assertivo da relação predicativa, mas apenas de uma modalidade apreciativa, marcada por uma estrutura de complementação de tipo impessoal (foi bom que, é bom que, etc.) com um complemento frásico no modo conjuntivo.

Verificamos, ao observar os enunciados (84b) e (84c), que estamos perante uma relação predicativa validada. Mas essa validação não é construída em Sit0, isto é, não é construída na enunciação daqueles enunciados, mas numa situação de enunciação anterior (por exemplo, do enunciado o Gil plantou/ está a plantar uma árvore). Em (84c), o enunciado pode constituir a réplica a uma constatação – do próprio enunciador ou do seu co-enunciador – ainda que essa constatação não tenha sido verbalizada. Em qualquer dos casos, podemos dizer que a validação da relação predicativa constitui um pré-construído.

Em (84d), a relação predicativa não é construída como validada mas como validável. E é construída uma modalidade apreciativa incidindo sobre a validabilidade dessa relação predicativa.

Parece-nos possível tirar as seguintes conclusões no que diz respeito à ocorrência dos modos indicativo e conjuntivo nos enunciados acima:

(85)

(i) o modo indicativo marca a validação ou não-validação da relação predicativa em Sit0, isto é, a construção de um valor de asserção estrita;

(ii) o modo conjuntivo marca que a relação predicativa não foi validada nem não-validada em Sit0. Pode ter sido construída como validável ou não-validável (desejo que eles cheguem, duvido que eles cheguem), mas pode também ter havido validação (ou não-validação) dessa relação predicativa, isto é, construção de um valor de asserção estrita, mas numa situação de enunciação distinta de Sit0. Essa asserção, em Sit0, constitui um pré-construído (2).

11.2.1.3 Modalidade intersujeitos

Observemos agora um terceiro tipo de modalidade:

(86)

a. é necessário que o Gil plante uma árvore

b. o Gil tem de/deve/devia plantar uma árvore

c. o Gil pode plantar uma árvore

Nos enunciados (86), é construída uma relação entre o sujeito enunciador e o sujeito do enunciado (o Gil). Este é pressionado (ex. (86a) e (86b)) ou autorizado (ex. (86c)) pelo enunciador a realizar o evento ou a actividade expressos no predicado. Estamos perante um valor modal (ou modalidade) intersujeitos.

Salvo casos especiais, este valor modal só ocorre se a relação predicativa for caracterizada como [+Dinâmica] e se o argumento que tem a função de sujeito sintáctico for caracterizado como Agente.

A modalidade intersujeitos corresponde a uma relação interagentiva entre o sujeito da enunciação e o sujeito do enunciado: o sujeito da enunciação age sobre o sujeito do enunciado, procurando desencadear uma situação dinâmica— representada pela relação predicativa — em que esse sujeito do enunciado é Agente. De acordo com esta definição, podemos dizer que o modo verbal imperativo é também marcador de modalidade intersujeitos.

Apresentamos em seguida um exemplo em que é visível a interdependência na construção de valores modais e aspectuais a que nos referimos atrás:

(87)

a. *deves ser alto

b. deves ser cuidadoso

Os predicados adjectivais (ser) alto e (ser) cuidadoso são ambos estativos. No entanto, para a interpretação da modalidade intersujeitos, o enunciado (87a) é mal formado, ao passo que o enunciado (87b) é bem formado. O predicado (ser) alto exprime uma propriedade que, estabilizada ou não, não pode ser alterada pela vontade de um Agente, seja ele o sujeito da enunciação ou o sujeito do enunciado. Daí a sua impossibilidade de ocorrência num enunciado com valor de imperativo, como já tínhamos visto em 11.1.3.2.

O predicado estativo (ser) cuidadoso, pelo contrário, exprime uma propriedade susceptível de ser alterada por acção de uma vontade. Esse predicado pode ser recategorizado em actividade, como vimos também em 11.1.3.2. É o que se passa em (87b), em que se dá a recategorização de natureza aspectual, determinada pelo tipo de valor modal construído.

(...)

______________________________

(1) Ver Campos 1989.

(2) Parece-nos importante sublinhar que o valor do conjuntivo que acima definimos é mais geral do que o valor que é tradicionalmente associado ao modo conjuntivo: "Ao empregarmos o modo conjuntivo [...] encaramos [...] a existência ou não existência do facto como uma coisa incerta, duvidosa, eventual ou, mesmo, irreal" (Cunha; Sintra 1984: 464). Esta definição não engloba o uso do conjuntivo em enunciados com valor apreciativo.

____________________

CAMPOS, M.H.C e M.F. XAVIER. (1991).Sintaxe e Semântica do Português. Lisboa: Universidade Aberta, (pp. 361-379).