A. Língua, comunidade linguística, variação e mudança

PERES,J.A e MÓIA, T. (1995)Áreas Críticas da Língua Portuguesa, Ed. Caminho, Lisboa, (pp.34-41).

Gramática, variação e desvio

1.4. 1. Variantes e registos linguísticos

Em relação ao primeiro tópico, importa clarificar as diferenças entre o que - seguindo a literatura mais comum sobre a matéria - poderemos chamar uma variante de uma língua e um registo linguístico. Uma variante (ou, na terminologia que temos usado, um subsistema) de uma língua distingue-se pela associação do núcleo de características centrais dessa língua - lexicais, sintácticas e fonológicas - a um conjunto de características particulares envolvendo um ou mais destes níveis. Naturalmente, estas características têm de apresentar alguma estabilidade ao longo de um período razoável de tempo e, acima de tudo, têm de ser sustentadas por uma comunidade linguística minimamente representativa(1). Quanto aos factores que determinam a diferenciação de variantes de uma língua, entre eles contam-se pelo menos factores de ordem geográfica, factores de ordem sociocultural (obviamente associados a factores mais primários como o grau de instrução ou o estatuto económico) e ainda o cada vez mais relevante contacto entre línguas. Como seria de esperar, dada a complexidade da organização social, os diversos factores não actuam isoladamente, determinando variantes de origem exclusivamente geográfica (normalmente chamadas dialectos), social (normalmente chamadas sociolectos) ou outra, antes actuam em confluência, gerando, por exemplo, diferentes variantes de motivação socio-cultural adentro de urna variante cuja uniformidade é resultante de factores geográficos.

Os registos linguísticos distinguem-se em vários aspectos das variantes. Em primeiro lugar, os factores que determinam a sua conformação são fundamentalmente de ordem funcional e situacional, isto é, os registos linguísticos dependem da função com que a linguagem é utilizada e da situação que lhe serve de contexto. Podemos, assim, dizer que o registo linguístico, por exemplo, varia consoante a linguagem seja usada oralmente ou em escrita, consoante os objectivos da comunicação (informativos, didácticos, lúdicos, etc.) ou consoante os destinatários e a formalidade da situação. É claro que, uma vez mais, no conjunto de factores actuantes na emergência de um registo - ou, talvez melhor, na predominancia de algum dos seus traços - se integram também factores não situacionais, normalmente de ordem sociocultural.

1.4.2. Relações entre variantes linguísticas

Sobre o tópico respeitante ao estatuto absoluto e relativo das variantes de uma língua, são duas as ideias que nos interessa por em relevo. Em primeiro lugar, a ideia de que, conforme já referimos, um conjunto de características lexicais ou gramaticais adquire o estatuto de variante linguística pelo simples facto de subsistir numa comunidade linguística. Em segundo lugar, a ideia de que, de um ponto de vista estritamente linguístico, todas as variantes têm idêntico interesse e dignidade enquanto objectos de estudo, uma vez que todas elas são sistemas organizados por uma gramática. Assim, tanto é uma variante do português com interesse científico, por exemplo, aquela em que sistematicamente se flexionam as formas de segunda pessoa do singular do pretérito perfeito simples por analogia com as do presente do indicativo - tu fostes, estivesses, dançasses - como aquela em que essa analogia não intervém; ou aquela variante, tão frequente em muitas regiões do país e grupos populacionais, em que a conjugação pronominal recíproca da primeira pessoa do plural se faz à imagem da da terceira pessoa - quando se encontrámos, ainda não se conhecíamos, quando se abraçámos... - e aquela que distingue as duas pessoas - quando nos encontrámos, ainda não nos conhecíamos, quando nos abraçámos ... ; ou aquela variante em que não é feita a distinção fónica entre os grafemas «b» e «v» e aquela em que o é; ou, para darmos ainda mais um exemplo, aquela em que se usam os termos almareado, marafado ou marfado, griséus e arvelhanas e aquela em que os termos correspondentes são, respectivamente, agoniado ou tonto, zangado ou furioso, ervilhas e amendoins. E é claro que também integram uma variante do português os termos ou as construções que um grupo de falantes adopta por imitação - nem sempre necessária e por vezes servil - de línguas estrangeiras.

1.4.3. Motivação da opção por uma variante

A questão da opção por uma variante linguística - que enunciámos como terceiro tópico a discutir - pode colocar-se, particularmente em espaços linguísticos muito diversificados, quando se têm em consideração certos objectivos específicos. Entre estes, contam-se, por exemplo, o ensino da língua - quer enquanto língua materna quer enquanto segunda língua ou língua estrangeira -, a redacção de textos oficiais, a difusão de informação através de meios de comunicação social que atinjam comunidades que sustentam variantes linguísticas diversas e também o tratamento computacional da língua. Consideraremos, em primeiro lugar, a dimensão dialectal das opções em análise e, em segundo, a sua dimensão sociolectal.

Espalhada pelos vários continentes, é natural que a macro-entidade linguística a que se chama língua portuguesa apresente grande variação dialectal, não só nos planos fonético (que, como dissemos acima, inclui a pronúncia das palavras e a entoação das frases) e lexical, mas também no da sintaxe. A estes tipos de divergências, há ainda que acrescentar a diferenciação ortográfica - nomeadamente entre o espaço brasileiro e o espaço português -, a qual, sendo muito importante em vários domínios práticos - como a edição de textos, a comunicação computadorizada ou a intervenção em organismos internacionais -, é seguramente, de todos os modos de variação, o que menos pesa na diferenciação entre as variantes.

Naturalmente, e independentemente dos fins em vista, as opções dialectais fazem-se em Portugal no quadro das variantes europeias, já que não faria sentido que ensinássemos às nossas crianças, ou aos estrangeiros que procuram os nossos cursos de língua portuguesa, o vocabulário, a fonética ou traços da sintaxe de outras variantes, por exemplo a brasileira (não obstante o facto de o contacto com esta variante ser talvez hoje um dos factores extrínsecos que mais determinam a evolução do português europeu, pelo menos no registo coloquial dos grupos socioculturais mais expostos e permeáveis à influência de certos programas televisivos). Evidentes que são para todos os falantes portugueses algumas características lexicais e fonéticas do português do Brasil, salientemos de passagem algumas das suas particularidades sintácticas, para que, por contraste, as nossas se tomem mais claras: por exemplo, a colocação dos pronomes clíticos (o barco se afastou, em vez de o barco afastou-se), a neutralização do caso dos pronomes pessoais (eu vi ele, em vez de eu vi-o), a generalização de processos de redução das estruturas relativas (o menino que o pai não veio, em vez de o menino cujo pai não veio, ou a moça que o Pedro falou, em vez de a moça com quem o Pedro falou, ou ainda a cidade que eu morei, em vez de a cidade onde eu morei (2)) ou ainda a construção gerundiva na expressão do chamado «aspecto progressivo» (ela está dormindo, em vez de ela está a dormir), esta, aliás, comum em algumas regiões do Sul de Portugal.

Enquanto a variação dialectal entre o português europeu, o português do Brasil e as variantes africanas envolve os vários planos do sistema linguístico, pode-se dizer que a variação adentro do espaço português é fraca no plano sintáctico - já que, segundo cremos, as diferenças são despiciendas - e forte nos planos lexical e fonético, onde a diversidade é acentuada - pense-se, por exemplo, nas pronúncias e nos vocabulários típicos de regiões do país como o Alentejo, o Minho, as Beiras interiores ou os Açores -, se bem que não envolva diferenças tão drásticas quanto as que se verificam noutros espaços linguísticos (como, por exemplo, a Itália).

Assim sendo, os portugueses vêem-se confrontados, no plano da variação dialectal, sobretudo com opções lexicais e fonéticas. Para melhor se apreender esta questão, imagine-se, por exemplo, que um locutor micaelense (ou de qualquer outra região do país com forte personalidade fonética) é contratado para um canal televisivo de cobertura nacional. É previsível e natural que esse locutor, mesmo sem que qualquer pressão seja sobre ele explicitamente exercida, tenda a moldar a sua dicção pela fonética de uma outra variante (que é, grosso modo, e como se sabe, a que é sustentada pelos grupos mais escolarizados de uma zona central do país que vai, aproximadamente - e com todo o excesso que este tipo de generalizações envolve -, de Lisboa a Coimbra), a que chamaremos, para facilidade de referência, variante central (do português europeu). Haveria, pois, nesse caso - e em muitos outros similares que poderíamos imaginar, desde o ensino de português a estrangeiros ao desenvolvimento de um projecto de síntese ou reconhecimento computacionais de fala - uma opção por uma variante (fonética) regional do português, em detrimento de outra.

Se pensarmos na variação dialectal do ponto de vista do léxico, chegaremos ao mesmo tipo de conclusões. Reflectindo uma vez mais a partir de realidades concretas, dificilmente podemos imaginar um comunicador dirigindo-se a uma audiência portuguesa de amplitude nacional para a ensinar, por exemplo - e para recorrermos a vocábulos já referidos, de entre muitos milhares que se poderiam invocar -, a fazer um «arroz de griséus com um pouco de manteiga de arvelhanas», com a garantia de que os ouvintes «não ficarão almareados após a degustação» e de igual modo «não ficarão marafados por causa da despesa feita».

Sendo, pois, indiscutível que, em determinadas circunstâncias, os falantes do português europeu optam pela já referida variante central da sua língua, a questão que importa colocar é, obviamente, a das razões que subjazem a esse tipo de opções dialectais. Parece-nos que essas razões são de ordem diversa e que entre elas se incluem, muitas vezes, razões de prestígio social, que se traduzem na ocultação de traços de origem - no caso, geográfica - que podem, para a parte da sociedade menos informada e, por isso, menos aberta à diversidade, transportar consigo uma marca negativa. Este tipo de razões é, evidentemente, o que não pode justificar, quer para o linguista quer para o falante bem (in)formado, a opção por urna variante dialectal. Há, porém, do nosso ponto de vista, pelo menos duas razões válidas para tal tipo de opção.

A primeira destas razões tem a ver com a facilidade da comunicação, urna vez que se verifica, na prática, que a variante central - a da maior parte da faixa do litoral-centro entre Lisboa e Coimbra - se tornou a menos problemática em ternos de inteligibilidade, ao longo de todo o território, passando, assim, a funcionar como uma espécie de língua franca, factor de unificação nacional, por razões geográficas e históricas que facilitaram a sua difusão e reconhecimento generalizados e que aqui não vamos explicitar. Feita esta verificação, parece razoável que, sem tentar anular ou sequer menosprezar a riqueza patrimonial que constitui a diversidade linguística do país, se opte pela fonética e pelo léxico - adiante falaremos da sintaxe, mais relevante numa perspectiva sociolectal - da sua variante linguística que mais facilmente é captada por toda a população, quando, por exemplo, se escreve para os meios de comunicação social de âmbito nacional ou se ensina a língua portuguesa a estrangeiros. Já no ensino da língua materna, nos parece que também podem e devem ser explorados quer o vocabulário quer a fonética próprios das variantes locais, obtendo-se seguramente como resultado um maior desenvolvimento intelectual dos estudantes, através do aprofundamento da sua sensibilidade e agilidade linguísticas.

A segunda razão decorre da primeira e tem a ver com a economia que, em determinadas circunstâncias, resulta de se pôr em foco aquilo que une uma comunidade linguística e não aquilo que a separa, em qualquer dos planos já referidos. Nesta perspectiva, pense-se, por exemplo, nos seguintes domínios, alguns dos quais já referidos, onde o léxico, a fonética ou ambos os planos são de grande importância: elaboração de dicionários básicos ou de manuais de ensino da língua, de difusão nacional ou destinados a estrangeiros; redacção de textos legislativos ou outros de interesse nacional; produção de correctores informáticos; simulação e reconhecimento da fala humana em computador. É indiscutível que em todas estas áreas de acção linguística é de crucial importância que se trabalhe sobre uma variante reconhecida pela diversidade das comunidades de falantes.

Passemos agora às opções por variantes linguísticas de índole sociolectal, onde são relevantes todos os planos acima referidos: o lexical, o sintáctico e o fonético. Logicamente, se as opções se fizerem em função de objectivos de carácter nacional, a opção sociolectal só faz sentido no quadro de uma prévia opção dialectal. A questão pode, portanto, formular-se nos seguintes termos: dos diferentes subsistemas linguísticos que convivem na variante central, por qual deles se opta quando se têm em vista os fins específicos já por mais de uma vez enunciados? A resposta é, sem rodeios, perfeitamente linear: opta-se - uma vez mais, muito grosso modo - pelo subsistema sustentado pelo grupo que atingiu níveis de escolaridade razoavelmente - uma vez mais, contentemo-nos com a vagueza da expressão - elevados.

Dar razões linguisticamente pertinentes para uma escolha - para além das óbvias razões da tradição - é talvez mais difícil no domínio sociolectal que no domínio dialectal. Na verdade, se tivermos em conta que as línguas não são nem têm de ser conservadoras e que todos os sociolectos tal corno, aliás, os dialectos - resultam de processos de transformação e diferenciação, nada há, do ponto de vista da estrutura linguística, que recomende uma variante em detrimento de outra. Haveria, sim, se urnas variantes se caracterizassem por urna forte coerência estrutural, por regularidades evidentes, por uma economia e elegância do sistema, enquanto outras se distinguissem pela sua tendência para o caos linguístico. Tal não acontece, já que todas as variantes de uma língua são fortemente sistemáticas e todas por igual apresentam fenómenos de desestabilização do sistema, por meio dos diversos tipos de inovação linguística. Portanto, do ponto de vista da ciência linguística, não existem - digamo-lo uma vez mais - boas e más variantes. Há apenas organizações diferentes no quadro de um sistema linguístico amplo e flexível. No entanto, opta-se e a pergunta permanece: como e porquê optar?

Cremos que, para além da tradição histórica de opção pela variante linguística sustentada pelos grupos mais letrados de um espaço linguisticamente diversificado segundo parârnetros geográficos e socio-culturais, emerge como aceitável uma razão de grande peso que tem a ver com o património cultural escrito. É, de facto, inegável que os monumentos escritos que a história vai acumulando - da poesia à prosa ficcional, da oratória ao ensaio, do texto jurídico ao científico - são por norma produzidos no quadro de uma variante que, não obstante a imensa margem de variação e inovação que integra, tem contornos precisos, adquiridos ao longo do processo histórico. Mas se assim é, se o acesso ao património escrito de uma comunidade depende do domínio, da variante em que ele predominantemente se produziu - e que ao mesmo tempo moldou -, então tal variante (por alguns, como Cunha e Cintra (1 984), chamada «norma culta», mas que, na verdade, é apenas a variante dos grupos mais escolarizados do litoral centro) tem de, no interesse da comunidade linguística em geral, ser privilegiada em tudo o que respeite à preservação e ao desenvolvimento da cultura escrita: no ensino, na comunicação social, na redacção oficial, no tratamento informático da língua. Aos linguistas compete acompanhar o seu desenvolvimento, registar as suas variações, sugerir nos casos de dúvida as soluções que a língua melhor pode incorporar - tudo para que seja possível manter e incrementar uma filão de riqueza cultural que, por meio da língua, atravessa o espaço, o tempo e os grupos sociais.

(...)

1.4.4. O desvio ou erro linguístico

Do que ficou dito nas subsecções anteriores, decorre cristalinamente que o nosso conceito de desvio linguístico - ou erro, ou anomalia, ou irregularidade, se quisermos - nada tem a ver com alternativas fonéticas, lexicais ou sintácticas com uma justificação interna num subsistema linguístico e adaptadas de modo (razoavelmente) permanente por uma comunidade linguística (isto é, que contribuem para a definição de uma variante). Assim, as construções - ou usos lexicais, ou realizações fonéticas - que para nós configuram um desvio linguístico têm de obedecer a pelo menos duas condições: (i) constituírem rupturas com o subsistema ou variante de que é suposto fazerem parte; e (ii) não serem integradas - pelo menos, plenamente - pela comunidade linguística de suporte. Quando a segunda condição se verifica, o que inicialmente constituía um desvio torna-se uma de duas coisas: um factor de ressistematização ou um caso excepcional (de que qualquer língua ou variante tem exemplos). Quando, pelo contrário, ela não chega a verificar-se, o que temos diante de nós é o puro desvio, o desajustamento à variante supostamente adoptada, a quebra gratuita de uma harmonia que é um bem colectivo.

No que diz respeito à variante que aqui nos vai interessar - a dita variante culta -, o desvio linguístico é normalmente fruto da falta de familiaridade com os monumentos escritos da língua ou da ausência de um distanciamento em relação a ela que permita a compreensão da sua orgânica e das imensas possibilidades que oferece. O nosso objectivo neste texto é contribuir para despertar em alguns uma consciência mais aguda da língua que falam e escrevem, para que, de um patamar mais esclarecido, possam gerir a sua capacidade de exploração de possibilidades, de livre e criativa inovação e de detecção e eliminação do puro desvio.

Como já dissemos, são seis as áreas (críticas) da língua portuguesa em que encontramos ora desvios que nos parece que a comunidade rejeitará, ora sintomas de evolução que possivelmente vingarão, de acordo com o evidente princípio linguístico de que o normal de hoje foi ruptura de ontem. São as que aqui enumeramos de novo, convidando o leitor a percorrê-las connosco: estruturas argumentais, construções passivas, construções de elevação, orações relativas, construções de coordenação e concordâncias.

____________

(1) - É claro que deixamos aos especialistas a tarefa de se pronunciarem sobre o que podem significar, neste contexto, os termos «razoável» e «minimamente».voltar

(2)- Extraímos os exemplos de português do Brasil do seguinte trabalho de Mary A. Kato: «Recontando a história das relativas em uma perspectiva paramétrica», in I. Roberts e M. A. Kato (orgs.), Português Brasileiro, uma Viagem Dicrônica, Editora da UNICAMP, Campinas, SP, 1993.voltar